Ornette Coleman: “Round Trip: Ornette Coleman on Blue Note” (Blue Note)
Blue Note
Se fizermos o exercício de reduzir a história do jazz a sete nomes, Ornette tem que constar: Louis Armstrong, Duke Ellington, Charlie Parker, Thelonious Monk, John Coltrane, Miles Davis e Ornette Coleman. É ele quem, como num exercício de engenharia, cria novas possibilidades ao permitir que a música assente em menos pilares. Quando, em 1958, gravou o seu primeiro LP “Something Else!!!” para a pequena editora independente Contemporary, fez história e criou uma nova forma de poder tocar jazz. Mesmo rodeado de músicos conservadores como Red Mitchell, Percy Heath e Shelly Manne, “Something Else!!!” já é outra coisa. Temos agora em mãos o meio desta história: a reedição dos LPs que gravou para a Blue Note, numa caixa com seis lindas rodelas pretas de 180g, uma edição analógica na série Tone Poet Vinyl Audiophile.
Depois da Contemporary (1958-1959) veio a primeira fase na Atlantic (1959-1965), onde o gravou alguns dos seus mais importantes discos também já devidamente encaixotados: primeiro em CD na “Beauty Is a Rare Thing (The Complete Atlantic Recordings)” e mais recentemente em LP na “Ornette Coleman: The Atlantic Years”. Chega agora numa edição extraordinariamente bem cuidada a fase na Blue Note (1965-1967) com estes 6 LPs pristinamente remasterizados, embalados e enquadrados por um excelente livrinho de Thomas Conrad. A seguir a esta fase muitas outras se seguirão e, sabemos hoje, que o final da história é tão bom e surpreendente como o início e o meio: discos extraordinários editados por diversas labels como o “Soupsoads, Soapsuds” (1978) na Artists House, “Virgin Beauty” (1988) na Portrait, “Song X” (1986) na Geffen, os “Sound Museum” (1996) na Harmolodic, etc,. mostram-nos um génio que nunca deixou de querer abrir portas e sentar-nos em sofás desconfortáveis.
Como é que chegamos à Blue Note? Depois do período na Atlantic, onde as suas ideias ficam claras e o mundo do jazz dá um passo em frente, segue-se uma fase de reclusão: Ornette sente que o “mundo” do jazz – promotores, agentes, editoras, clubes, crítica – é racista e que o explora. Decide parar dois anos.
Em 1962, quando regressou do exílio auto-imposto, tinha aprendido a usar o trompete e violino, tinha um trio novo (com David Izenzon e Charles Moffett), e algum dinheiro ganho com a partitura para um filme. Resolve vir tocar na Europa e é nesse contexto que aparecem os dois “Golden Circle” (gravados ao vivo no Gyllene Cirkeln, um clube de jazz que existiu entre 1962 e 1967 em Estocolmo, na ABF House (ABF é o Centro de Educação dos Trabalhadores Suecos). Para mim, são dois dos melhores discos do eminente saxofonista. Os discos foram gravados em 1965 depois de o trio ter feito a tour na Europa. Estava rodado, coeso e estaciona duas semanas no frio sueco. As gravações de duas dessas noites fazem os dois primeiros discos de um novo contrato com a Blue Note. Temos o ponto de partida para esta caixa e para os seis LPs que fazem o corpus deste período do saxofonista/trompetista/violinista na casa de Alfred Lion e Francis Wolff.
Não vamos falar detalhadamente de cada um dos discos desta caixa (nem tão pouco da felicidade e do "Shangri-La", que é o que sobrevém) mas os dois volumes do “Golden Circle” merecem umas notas de destaque. Com uma gravação espantosa em que ouvimos as pessoas, as mesas e uma gravação perfeita dos instrumentos, do público e do ambiente, somos levados por um trio com um som visceral, duro e por solos de oito minutos no saxofone. São dois dos meus discos favoritos e talvez o ideal para entrar no fabuloso mundo ornettiano.
As inovações rítmicas (um contraponto melódico dado pela bateria; Moffett é, neste aspecto, um dos que melhor percebeu as ideias do líder) mas também as melódicas e harmónicas (uma espécie de vertigem para a atonalidade) ouvem-se no seu melhor, despidas e puras. Na abertura do segundo volume escutamos pela primeira vez o trompete e o violino, dois instrumentos que o saxofonista claramente não domina, mas que tem a coragem de trazer para palco e de os tocar. Percebemos hoje que está num processo de procura de maior abstração através de instrumentos que não domina. Significam um músico ímpar que estava – e sempre esteve – em exploração, à procura de novos sons, de novas cores usando para isso dois instrumentos que não domina tecnicamente (para o resto ele tem o saxofone).
Regressado da Europa, grava “The Empty Foxhole” em 1966 com Rudy Van Gelder no mítico estúdio de Englewood Cliffs. Senta o seu filho Denardo no banco da bateria. A decisão de gravar com o filho foi, mais uma vez, muito criticada. Shelly Manne não foi diplomata e disse que a bateria deste disco era “unadulterated shit”; Freddie Hubbard disse que era “a little kid fooling around” (o que não deixa de ser verdade... Denardo tinha na altura 10 anos...). A propósito da forma como Ornette toca trompete, Hubbard já tinha afirmado “sounds like me when I was five” (apesar de que, neste disco, já ouvimos um trompete diferente e mais próximo do tradicional na música que dá o título ao LP, por exemplo).
As fotografias que aparecem no libreto que acompanha esta edição de Denardo e Ornette em estúdio são maravilhosas tocam qualquer pai.
“New and Old Gospel” é o quarto disco desta série, com Jackie McLean no alto e Ornette só no trompete. É, de certo modo, uma declaração. O altista lidera e Ornette passa para sideman. Nesta fase McLean tinha já começado um processo de afastamento do hardbop tradicional e a aceitação de Ornette para seu sideman no trompete fala-nos possivelmente de um reconhecimento mútuo. Diz-nos que, de algum modo, o veterano saxofonista reconhece a influência e importância da música de Ornette na sua e a vontade de colaborar nesta mudança. Porque Ornette aceita o papel de sideman não sabemos, mas admitimos perfeitamente que a admiração e o reconhecimento da importância do saxofonista mais velho na sua música pesaram na sua decisão.
A música fixada nos dois últimos discos desta caixa – “New York Is Now” e “Love Call”, ambos lançados em 1968 – vem de duas sessões feitas em Abril e Maio de 1968 nos estúdios da A&R em Nova Iorque. Mais uma vez ouvimos uma ruptura e novas ideias. Dewey Redman, também um patrício texano de Fort Worth (que, como Tim Berne referiu no último Jazz em Agosto, é uma cidade capaz de formar um número impressionante de bons músicos) aparece no tenor, ao lado do alto. Temos por isso dois saxofones na frente. Jimmy Garrison no baixo e Elvis Jones na bateria - a secção rítmica de um dos quartetos míticos de Coltrane – assegura a estrutura e a máquina rítmica.
Olhando hoje para a carreira de Ornette percebemos que, apesar de ter alguns músicos com quem gosta particularmente de tocar (ex.: Dave Holland), precisa deste desafio constante, de ser surpreendido por músicos diferentes que o obrigam a sair do seu lugar.
Esta caixa mágica começa a chegar ás prateleiras (e mesmo assim em doses reduzidas... não é fácil de a comprar...). Duvido que este ano seja capaz de dar outra reedição com esta importância. Ornette corporizou uma das grandes revoluções no jazz e abriu portas para a maior parte da música que hoje ouvimos. O trabalho de reedição foi feito com o cuidado histórico que estas peças merecem, devolvendo-as à audição nas melhores condições possíveis.
Esta música, que oferece sempre razões para ser reouvida e é capaz de permanentemente surpreender, merece este regresso. Faz mais pela reparação da alma que muito psicólogo ou livro sagrado.
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Round Trip: Ornette Coleman on Blue Note (Blue Note)
Ornette Coleman
Ornette Coleman (saxofone alto, violino e trompete), David Izenzon (contrabaixo), Charles Moffett (bateria), Denardo Coleman (bateria), Charlie Haden (contrabaixo), Jackie McLean (saxofone alto), LaMont Johnson (piano), Scott Holt (contrabaixo), Billy Higgins (bateria), Dewey Redman (saxofone tenor), Jimmy Garrison (contrabaixo), Elvin Jones (bateria)