Hugo Costa / Hernâni Faustino / João Valinho: “Garuda” (Subcontinental)
Subcontinental Records
Garuda é uma figura mitológica presente no budismo tantra tibetano, uma figura híbrida, meio homem e meio pássaro – ligação entre o céu e a terra –, que simboliza a união dos opostos. Na iconografia tibetana, Garuda é visto frequentemente atrás da cabeça de Buda, atuando como protetor e devorando o inimigo, a serpente (naga, em sânscrito), representando o estado desperto da mente. «O Garuda no Tibete é uma divindade que simboliza a confiança na equanimidade, na aceitação da impermanência», explica o saxofonista alto Hugo Costa à jazz.pt.
“Garuda” é também o nome do registo que documenta a primeira reunião deste trio de músicos: para além de Costa (que bem conhecemos de grupos como Albatre, Anticlan ou Real Mensch), o sempre muito ativo e multifacetado Hernâni Faustino no contrabaixo (RED Trio, Wire Quartet de Rodrigo Amado, Nau Quartet de José Lencastre, No Nation Trio, Staub Quartet, de entre uma miríade de diferentes projetos) e João Valinho, baterista que também espraia o seu trabalho por diversas formações e múltiplos contextos. O trio começou a germinar a partir do momento em que Hugo Costa – a residir em Roterdão, Países Baixos – convidou os outros dois no verão de 2021, em Lisboa, para uma sessão de trabalho, ressaltando logo claro que dali brotavam interações fluidas e simbióticas. O que resultou desse frutígero encontro tem agora edição da Subcontinental Records, virtualmente a única editora independente indiana de música experimental.
A proposta do trio está solidamente ancorada na tradição do free jazz e da livre improvisação, sem premissas estabelecidas e com o trio aberto para explorar múltiplas abordagens. Tudo foi completamente improvisado, concebido em tempo real, numa lógica de comunicação e espontaneidade. É uma música dinâmica e com intensa propulsão, mas que também não descura uma componente mais melódica e contemplativa, que evolui em várias direções. Não há aqui hierarquias ou subordinações de qualquer teor, antes uma equidade nos papéis, todos essenciais para o cômputo sonoro. Da música emana uma certa espiritualidade, uma aura meditativa, profunda, mas felizmente a milhas de qualquer laivo zen.
A abrir, o tema-título, “Garuda”, a peça mais longa, quase uma vintena de minutos, deixa claro quais são os propósitos do grupo, em permanente e apertada interação, com Costa a explanar o seu saxofonismo flamejante (à memória vem amiúde o saudoso David S. Ware), lançando sementes com o seu fraseado. A peça vai assumido diferentes formas, aqui mais densas, ali mais respiradas, com momentos em duo, contrabaixo e saxofone e também com a bateria no final. “Camel Caravan” assenta num constante drum roll, base para toda a improvisação, urdindo, com o contrabaixo, apertado tricot, a que paulatinamente se juntam as notas longas do saxofone, que ganham tração com o passar dos minutos.
Em “Jabbing”, vinheta abstrata mas de algum modo estruturada, Faustino pega no arco e alarga-se na exploração do seu instrumento, com a bateria de Valinho sempre prenhe de detalhes e o saxofone lancinante a andar por perto. “A Leap into Space” é introduzido num registo de notável lirismo, tergiversando depois para outras paragens mais tumultuosas. Parte de um motivo lançado por Faustino, logo secundado pelos outros dois, com o saxofonista a desenhar linhas de que emergem fragmentos melódicos, com a bateria a acrescentar muitos pontos. A dado momento, o contrabaixista retoma o arco, em diálogo com os sons agudos do saxofone, que remetem para melodias de culturas longínquas. Nos derradeiros minutos intensificam-se processos e tudo finda em altos níveis energéticos.
“Garuda” é uma proposta deveras recompensadora – intensa e urgente – que se deixa descortinar em audições sucessivas.
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Garuda (Subcontinental Records)
Hugo Costa / Hernâni Faustino / João Valinho
Hugo Costa (saxofone alto); Hernâni Faustino (contrabaixo); João Valinho (bateria)