Luís Figueiredo & Orquestra Jazz de Matosinhos: “Se Por Acaso” (Roda Music)
Roda Music
O pianista, compositor e arranjador Luís Figueiredo cumpre um sonho antigo e transporta as suas composições para o contexto de uma formação alargada, a incontornável Orquestra Jazz de Matosinhos. O resultado é "Se Por Acaso", disco que acaba de sair com selo da Roda Music.
No último par de anos a aposta de Luís Figueiredo (n. 1979) foi sobretudo para contextos mais intimistas, certamente pelas múltiplas possibilidades que estes oferecem: a solo em “À Deriva” e em notável dueto com o saxofonista João Mortágua em “Kintsugi” (ambos de 2021); “This Was What Will Be” (com o harpista Eduardo Raon e o contrabaixista João Hasselberg), o disco de estreia do projeto Círculo, que partilha com Rita Maria e Mário Franco, e “Pranava”, com a cantora Lara Lima, em 2020.
Agora, o pianista, compositor e arranjador conimbricense cumpre finalmente um desígnio que há muito nutria: trabalhar com um ensemble alargado de jazz. «Eu tinha um desejo antigo de fazer algo com a Orquestra Jazz de Matosinhos, mas por várias razões ainda não se tinha concretizado. Em 2021, aproveitando a existência do programa “Garantir Cultura”, convidei o Pedro Guedes e a orquestra a gravar este programa e assim aconteceu», explica Luís Figueiredo à jazz.pt.
E se bem o pensou, melhor o concretizou, revisitando algumas das suas composições e criando outras especificamente para orquestra; assim nasceu “Se Por Acaso”, gravado no Centro de Alto Rendimento Artístico (CARA), na Real Vinícola, em Matosinhos, que acaba de ver a luz pela mão da Roda Music, editora independente que o pianista cofundou em 2019 e que já conta com um interessante catálogo. Mas os contributos não cessam aqui: a Figueiredo e à OJM juntaram-se os dois músicos superlativos que completam o trio habitual do pianista: o contrabaixista Bernardo Moreira e o baterista Bruno Pedroso.
A abrir, o single de avanço do álbum, o elegíaco “Canção para o Bernardo”. Figueiredo não esconde a sua admiração pelo músico tragicamente desaparecido há dez anos: «O Bernardo é uma enorme presença na minha vida musical, e não há dia em que não lhe sinta a falta. Depois do seu desaparecimento, passei vários anos com enorme dificuldade em ouvir e tocar a sua música, mas a partir de 2020 surgiram algumas ocasiões que felizmente me forçaram a reaproximar-me dele. Este tema surgiu-me durante esse período em que estava a ouvi-lo novamente e a trabalhar a sua música. Inicialmente, pus o tema de parte porque soava muito ao Bernardo. Mas mais tarde, quando reuni as composições para este disco, pensei que seria uma boa forma de me referir a ele e ao maravilhoso universo musical que criou.» A peça abre com a limpidez das notas de Figueiredo; a orquestra junta-se e sublinha a bela melodia, num arranjo eficaz que a transporta para outro patamar (a peça foi muito transformada desde a sua versão original, beneficiando sobremaneira da ambiência orquestral). Avultam intervenções de Mário Santos no saxofone tenor e de Ricardo Formoso no trompete.
Outra peça que ganha com o contexto é “A Porta de Trás”, bolero resgatado ao seu primeiro disco, “Manhã” (2011), em trio, e que constitui terreno fértil para o piano swingar graciosamente. Nota para o luminoso solo do sempre decisivo João Pedro Brandão no saxofone alto. Concebida originalmente como o terceiro andamento da suíte que abre o disco “Kronos/Penélope” (2017), “Azáfama” conhece aqui um arranjo colorido de Carlos Azevedo, que tira notável partido do xadrez instrumental. Atente-se na eficaz discrição do baterista e nos solos de Javier Pereiro no trompete e do próprio Figueiredo.
Um dos pontos altos da jornada chega em “L’ Aventure Commence” – expressão retirada do filme “Pulp Fiction”, mas levada à letra para ilustrar o período do nascimento da filha do pianista –, peça que já conhecíamos de “Lado B” – disco de 2012 que terá este ano uma reedição especial em vinil em comemoração do seu décimo aniversário –, com a sua arquitetura de filigrana sublinhada pela elegância da massa orquestral, com boas intervenções solísticas de José Pedro Coelho no saxofone soprano e de Bernardo Moreira no contrabaixo.
A fasquia continua bem alta na timbricamente luxuosa “En Passion” (alusão ao filme de 1969 de Ingmar Bergman, com Max von Sydow e Liv Ullmann), retirada do disco homónimo do projeto Círculo, com arranjo garrido que faz proficiente uso dos jogos entre os naipes, de que se eleva um Rui Teixeira altivo no saxofone barítono. A peça que dá título ao disco, escrita propositadamente para este projeto e que surgiu e amadureceu em sessões de estudo e testes de som para concertos, é introduzida pelo piano e exibe uma melodia rica, assente num balanço luminoso; após o solo de Ricardo Formoso no fliscorne, numa espécie de segunda secção, brota o piano de Figueiredo, assumindo um travo particularmente sassetiano. Para o final, a serenidade elegante de “Penélope” – nova leitura da peça incluída em “Kronos/Penélope”, filtrada pela lente de Carlos Azevedo (impossível não compulsar a notável interpretação de Rita Maria na versão original) – de que emanam bons solos do contrabaixista e de José Pedro Coelho, aqui em saxofone tenor.
“Se Por Acaso” é o mais recente testemunho da riqueza do universo musical de Luís Figueiredo e reitera o seu lugar entre os mais interessantes músicos do jazz nacional do nosso tempo. Não será um acaso, mas uma absoluta certeza.
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Se Por Acaso (Roda Music)
Luís Figueiredo & Orquestra Jazz de Matosinhos
Luís Figueiredo (piano); Orquestra Jazz de Matosinhos: João Guimarães (saxofone alto, clarinete); João Pedro Brandão (saxofone alto, flauta e clarinete); Mário Santos (saxofone tenor); José Pedro Coelho (saxofones tenor e soprano); Rui Teixeira (saxofone barítono, clarinete baixo); Luís Macedo, Ricardo Formoso, Rogério Ribeiro e Javier Pereiro (trompetes); Daniel Dias, Gil Silva, Andreia Santos e Gonçalo Dias (trombones); Bernardo Moreira (contrabaixo); Bruno Pedroso (bateria); Pedro Guedes (direção)