Filipe Raposo:  “Øbsidiana” (Lugre/Tinta-da-China)

Filipe Raposo: “Øbsidiana” (Lugre/Tinta-da-China)

Lugre / Tinta-da-China

António Branco

Três anos e uma pandemia depois do notável “Øcre” (recenseado na jazz.pt aqui), o pianista e compositor Filipe Raposo (n. 1979) regressa com “Øbsidiana”, o segundo capítulo da trilogia das cores, ensaio sonoro e visual que parte de uma reflexão artística sobre a influência de um sistema cromático ternário – vermelho, preto e o branco – cujo papel simbólico acompanha a Humanidade desde a Antiguidade Clássica. Bastará lembrar, por exemplo, a fábula “A Raposa e o Corvo”, de Esopo, em que toda a narrativa se desenrola à volta desta triangulação cromática: a raposa vermelha, que apanha um queijo branco, largado por um pássaro negro.

«Sempre escutei cor na música e acabou por ser inevitável chegar aqui. Ao ler sobre a história da cor, descobri a forma como a literatura acabou por assimilar o seu simbolismo. Assim, surgem estas novas composições, ligadas a histórias onde a cor é a protagonista, ora presente de forma subliminar, ora presente de forma categórica», diz Filipe Raposo à jazz.pt. Se “Øcre” – centrado no conceito de “início” – começa com uma homenagem ao primeiro momento da história da arte, presente no pigmento das pinturas rupestres, o vermelho lava, a evolução prossegue através de um processo de arrefecimento em que aquela se transforma na rocha negra ígnea (pedra do fogo) – obsidiana. «Acho que é isto mesmo, estamos sempre em processo de metamorfose, e a obra artística reflete essa mudança», acrescenta o músico.

Filipe Raposo continua a revelar o seu «universo simbólico-artístico», como gosta de lhe chamar, resultado de um processo de síntese criativa a partir de inúmeros elementos, do jazz à música erudita, passando pela música para cinema e pelo cancioneiro tradicional português. É desta interseção de referências que continua a brotar a sua própria voz enquanto criador. «Não consigo fechar a criação artística (da música à literatura, do cinema à fotografia...) num local estanque. Acredito que a voz de cada criador, é consequência do longo elo de artistas que começou precisamente com o início das representações rupestres. Desta longa linhagem, levamos connosco as nossas referências, os nossos heróis da história.»

Os períodos de confinamento pandémico interferiram no processo de criação destas peças, mas este já é solitário por natureza. «“Øbsidiana” surge curiosamente depois deste momento negro da nossa história recente. A ideia de sombra está muito presente neste disco. Lembro-me desses longos dias em que nos refugiámos em casa, de terem menos cor, talvez por não termos vivido o ciclo da primavera no seu esplendor. A cor preta, ligada à grande maioria das cosmogonias, também é em si uma cor de esperança – no vazio surge a luz.»

A improvisação continua a constituir-se como um ingrediente essencial na descoberta e desenvolvimento da obra, numa relação intensamente biunívoca com a composição. «Por vezes descubro uma boa ideia musical depois de ter estado a improvisar, outras vezes, da escrita de uma composição, surge uma nova secção que resulta em improvisação, como numa obra em aberto.» No belo livro que acompanha o disco, com chancela da Lugre/Tinta-da-Chima, a improvisação surge também sob a forma de imagem fotográfica. Todas as fotografias são do pianista e evocam texturas de rochas, fazendo a ponte com o terceiro volume da trilogia (branco gelo). Relojoeiro dos sons, Raposo conserva e desenvolve em “Øbsidiana” as características centrais de um pianismo de enorme rigor e sensibilidade melódica, harmónica e rítmica, com um muito particular atenção ao pormenor, que há muito lhe reconhecemos.

A viagem inicia-se com “Lascaux Cave”, peça elegantíssima parcialmente baseada na melodia tradicional “Ó menino ó” e que evoca os espaços onde os primeiros artistas representaram os nossos medos e desejos. “No Princípio Era a Noite” começa tranquila, mas paulatinamente ganha contornos de maior intensidade, como num processo de formação a partir do nada (como diz a cosmogonia chinesa, «Terra e céu eram ainda um e tudo era Caos. O universo era como um grande ovo negro.») Mais introspetiva é “Do not go gentle into that good night”, inspirada pelo poema de Dylan Thomas, que descobriu no dia 1 de novembro de 2020, na primeira vez que viveu o dia dos mortos depois da morte do pai. Contrastei-a com a peça de John Cale, sobre o mesmo poema, incluída em “Fragments of a Rainy Season”, gravada ao vivo pelo pianista galês em 1992.

Uma agitação quase dançante marca “A Sombra de Peter Schlemihl”, baseada no livro “A História Fabulosa de Peter Schlemihl”, de Adelbert von Chamisso, que conta a incrível história de um rapaz pobre à procura de emprego que é abordado por um estranho indivíduo – homem cinzento — que quer comprar a sua sombra. A atmosfera intrigante de “Omnes umbra hominis lineis circundacta” (que significa “o delinear do contorno da sombra humana”) prolonga-se de alguma forma em “Et in Arcadia ego”, a partir de inscrição na lápide funerária de Nice (séc. I/II), encontrada em Beja: «Quem quer que tu sejas, viandante, que passares por mim, neste lugar sepultada [...] depois de teres lido que faleci ao vigésimo ano de vida, e se o meu descanso te sensibilizar, rogarei que [...] tenhas mais longo descanso, mais tempo vivas e longamente envelheças nesta vida que não me foi lícito desfrutar.»

O romantismo dramático de “La Mort des Amants”, inicialmente escrita como uma canção, bebe em Baudelaire e lida com a partida e a chegada, a vida e a morte, como um gesto cíclico. A melodia torturada de “Noir” assume um cariz fortemente imagético. “Só os caminhos antigos levam mais longe” é uma citação retirada do filme “Asas do Desejo”, de Wim Wenders, em que aqui o caminho antigo simboliza J. S. Bach e o seu prelúdio em dó maior do “Cravo Bem Temperado” – obra icónica do repertório dos instrumentos de tecla, em que se fundou a escrita desta peça. A generosidade melódica de “A Solidão da Árvore” antecede “Entrudo”, baseada nas melodias tradicionais “Lá em baixo vem o Entrudo”/“Moda do Entrudo”, que Raposo interpela de modo muito interessante, simbolizando um tempo de rotura, de destruição e caos, para que um novo mundo se inicie.

A preocupação com a tragédia ucraniana em curso surge plasmada na solenidade transcendental do prelúdio coral “Nun komm der Heiden Heiland” (BWV 659) [“Vem então, salvador dos gentios”], de Bach (com transcrição para piano de Ferruccio Busoni), que Raposo escolheu para encerrar esta coleção de peças, mas que também poderia ter sido o seu início. (A escolha de uma peça do génio de Eisenach para fechar cada disco da trilogia ficou uma espécie de assinatura; em “Øcre” havia escolhido “Sarabande”, da suíte inglesa em sol menor.)

Raposo levanta a ponta do véu para o derradeiro volume da trilogia, que muito provavelmente irá chamar-se “Variações do Branco”. «Em conversa com um amigo antropólogo, descobri que os esquimós que habitam o Círculo Polar Ártico conseguem identificar cerca de 40 variações de branco, atribuindo nomes para essa paleta. Adoraria fazer uma residência artística num local assim, com o branco a perder de vista e com esse silêncio como uma pauta em branco.» 

“Øbsidiana” é uma fascinante jornada sonora, que nos surpreende, desafia e emociona da primeira à última nota.

  • Øbsidiana

    Øbsidiana (Lugre / Tinta-da-China)

    Filipe Raposo

    Filipe Raposo (piano e composição)

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