Michael Gregory Jackson: “Electric Git Box” (Golden Records)
Golden Records
O guitarrista, compositor, cantor e poeta Michael Gregory Jackson, que a dado momento teve de trocar o apelido pelo nome do meio para evitar confusões com o homónimo estelar, é um músico cujos predicados são amiúde enaltecidos por guitarristas como Pat Metheny, Marc Ribot, Bill Frisell, Vernon Reid, Brandon Ross, Nels Cline ou Mary Halvorson. O seu mais recente álbum, “Electric Git Box”, é o seu primeiro, e notável, registo a solo num percurso de quase meio século.
Ao longo dos anos, Michael Gregory Jackson (n. 1953) construiu uma abordagem muito pessoal e desbravadora, ao instrumento e à música, solidamente ancorada nos blues. Guitarrista plurifacetado, move-se com igual destreza em domínios que vão do jazz mais livre ao rock, passando pelo funk e pelo R&B.O famoso crítico da revista Rolling Stone, Robert Palmer, disse lucidamente que ele sintetizava de forma original influências que vão de Stravinsky a Ellington, passando por Hendrix e Earth, Wind & Fire.
Jackson é um guitarrista histórico e que dispensa apresentações, mas recordem-se alguns dos seus passos mais decisivos. Participou como líder dos seus próprios grupos e como como sideman e na compilação “Wildflowers – The New York Loft Jazz Sessions”, que documentou o movimento dos lofts da downtown nova-iorquina, e colaborou de forma próxima com vários nomes ligados à Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM), como Roscoe Mitchell, Muhal Richard Abrams e George Lewis. Fez parte do quarteto do saxofonista Oliver Lake e tocou também com Wadada Leo Smith (com quem se cruzou inicialmente em 1973 na sua New Haven natal), Anthony Braxton, Julius Hemphill, David Murray, Marty Ehrlich e Baikida Carroll, entre uma infinidade de outros.
Tocou e produziu para Leo Smith e o seu grupo Organic os superlativos “Spiritual Dimensions” (2009) e “Heart´s Reflections” (2011), ambos com chancela da Cuneiform; há três anos, trouxe-nos “Whenufindituwillknow” – acompanhado pelos dinamarqueses Niels Praestholm – baixista, Simon Spang-Hanssen (saxofone) e Matias Wolf Andreason (bateria), recenseado na jazz.pt aqui. Os três fizeram parte do Art Ensemble Syd, que com Jackson gravou “Liberty”, em 2013; dois anos depois o mesmo quarteto deu à luz, já sob a liderança de Jackson, o recomendável “After Before”. No ano passado resgatou da arca o soberbo “Frequency Equilibrium Koan”, gravado ao vivo em 1977 no Ladies' Fort, histórico loft localizado no número 2 da Bond Street, no bairro nova-iorquino de NoHo, com o saxofonista alto Julius Hemphill, o violoncelista Abdul Wadud e o baterista Pheeroan aKLaff.
E em 2022... volta a surpreender-nos com algo totalmente diferente: o seu primeiro álbum a solo de guitarra elétrica, “Electric Git Box”, exclusivamente disponível através da sua página no Bandcamp e dedicado a Greg Tate, escritor, músico e produtor, desaparecido em dezembro de 2021. Em notas de apresentação do álbum, Jackson explica-nos o título: «As minhas guitarras, a que chamo “git boxes” desde a adolescência, sempre foram as minhas companheiras e um santuário para mim, veículos para me ajudar nas angústias da minha vida jovem e agora. Através das minhas guitarras, descobri disciplina, autoconsciência e inspiração; as minhas “git boxes” abriram um canal, um mergulho profundo e uma conexão com o blues em mim.»
E eis-nos perante uma coleção de onze peças verdadeiramente a solo, sem especiais adornos ou pirotecnias vãs: não há overdubs ou loops, apenas um delay e outros efeitos muito subtis, como algum reverb. Cerca de metade destas peças originais são íntimas e comoventes, homenagens pessoais a amigos e colegas. Jackson dialoga com o seu instrumento e estende a conversa a quem o escuta, refletindo sobre o que experienciou de belo e de menos belo, provações e tribulações, de uma viagem de vida assente na música. Em jeito de confissão, diz-nos o próprio Jackson: «Este projeto nasceu de um período cheio de angústia para mim; estava a sentir-me inundado por tragédias, o isolamento dos confinamentos da covid, os assassínios recorrentes de pessoas negras por polícias e seguranças, vivendo com a realidade omnipresente do racismo sistémico.» A reação a este estado mental não se fez esperar: «Estava a sentir-me zangado, desconetado e apagado; assim, gravei esta música com algumas arestas, alguma distorção, para comunicar o poço multifacetado de emoções que deram origem a esta performance.»
A peça de abertura, “Karen (Sweet Angel)”, é uma balada dedicada à mulher, com dedilhados serenos e ostinatos cinemáticos e melancólicos, contrastando acordes abertos com apontamentos melódicos. Esta atmosfera prossegue em “Theme-X (for Geri Allen)” – que já conhecíamos de “Whenufindituwillknow” –, peça requintada dedicada à pianista e compositora desaparecida em 2017. “Jcak Jcak”, tributo a Ornette Coleman, muda a agulha com uma sonoridade carregada de energia, rápida e por vezes dissonante e “Medidation in E (for Karen)”, outra peça introspetiva dedicada à mulher, espelha um peculiar sentido harmónico banhado nos blues. A grande sensibilidade melódica de Jackson está novamente bem expressa em “Sweet Rain Blues” (ao mesmo tempo urbana e rural, como certeiramente nota Vernon Reid), um dos momentos maiores do disco.
Resgata ao olvido “Prelueoionti”, originalmente incluída no seu álbum de estreia, “Clarity, Circle, Triangle, Square”, de 1976. O pungente, quase fúnebre, “Hymn for my People”, encontra sequência lógica em “Perseverance”, com a sua graciosa linha melódica que adquire contornos de um quase hino. “The Rainy Days” sugere recolhimento e “Wish”, com o som da guitarra a lembrar um sitar elétrico, espelha otimismo por dias melhores. Outros dos píncaros do álbum está guardado para quando este se apresta para dizer adeus, “The Science of Beauty (for Arthur Livermore)”.
«Música é libertação», disse o guitarrista no mais recente número da revista “Premier Guitar”, e a sua música tem-no provado. “Electric Git Box” pode bem ser a sua viagem musical mais pessoal de sempre.
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Electric Git Box (Golden Records)
Michael Gregory Jackson
Michael Gregory Jackson (guitarra elétrica)