José Menezes: “Hundred Umbrellas” (Edição de autor)

José Menezes: “Hundred Umbrellas” (Edição de autor)

Edição de autor

António Branco

Senhor de longa e profícua carreira, José Menezes é um dos mais respeitados saxofonistas portugueses. Mas os desígnios da vida são insondáveis e só agora, tantos anos volvidos desde que descobriu os mistérios da música e do jazz, lança o seu primeiro álbum em nome próprio, “Hundred Umbrellas”, com um grupo all-stars. A jazz.pt já o escutou.

No projeto “Hundred Umbrellas”, o saxofonista, compositor e docente José Menezes (n. 1957) interpela criativamente o seminal legado de Erik Satie (1866-1925), quer através da revisitação da sua obra, quer de peças próprias inspiradas no trabalho inovador do compositor francês da viragem do século XIX para o XX. Acompanham-no, desde o início do projeto, outros músicos da linha da frente do jazz nacional: o trompetista Gonçalo Marques, o guitarrista Mário Delgado, o contrabaixista Carlos Barretto e o baterista e percussionista José Salgueiro.

Não conseguindo precisar as circunstâncias concretas em que contactou pela primeira vez com a música de Satie, assume o impacte imediato desta. «A música de Satie está em muito lado, no nosso dia-a-dia sonoro: no cinema, na publicidade, nos genéricos de programas e às vezes até nas salas de concerto. Mas quem ouve pela primeira vez uma das “Gymnopédies” ou “Gnossiennes”, nunca mais esquece e vai querer saber quem escreveu a peça que acabou de ouvir», disse o saxofonista em entrevista recente à jazz.pt. Satie nunca teve o reconhecimento de compositores coevos, como Debussy, Ravel, Mahler ou Schönberg, mas destacou-se pela sua abordagem idiossincrática à música e à vida: «A sua personalidade única deixou uma marca fortíssima na música que compôs, o que a torna imediatamente reconhecível e de um enorme impacto emocional em quem a ouve», acrescenta Menezes.

A origem do projeto Hundred Umbrellas (inicialmente grafado 100 Umbrellas) é mais clara, remontando há quase década e meia. «Desde que conheci a música de Satie, fiquei muito atraído e interessado nela. Isso levou a que em 2009 eu pensasse reunir alguns das suas composições, arranjando-as de forma a trazê-las para uma linguagem mais próxima do jazz, criando em cada uma delas espaços de improvisação.» A primeira apresentação em palco aconteceu em 2010. O projeto esteve desde então na gaveta, como que aguardando o momento certo para reivindicar a luz do dia. Com muitos projetos a acontecer de permeio, entrou numa espécie de longa hibernação até que a alteração profunda do ritmo de vida e de trabalho motivado pela situação pandémica em que todos submergimos o fez voltar a pensar nos chapéus-de-chuva (uma vénia é devida a António Curvelo, que transmitiu a Menezes o entusiasmo com a possibilidade de gravação do projeto).

O sentido de humor do excêntrico Satie transparece na forma como o saxofonista português pegou na sua obra, desde logo no título que escolheu para o disco, que tem uma história (real) curiosa. Tudo aconteceu quando após a sua morte os amigos mais próximos do compositor entraram no quarto em que este vivia e onde se isolou durante quase três décadas (para o qual nunca os convidara em vida) e encontraram muitas dezenas de chapéus-de-chuva. A música de Satie é particularmente fértil para a improvisação sobretudo, mas não só, nos terrenos do jazz. Para Menezes, as suas composições têm «espaço por onde a melodia se pode estender e transfigurar.» Tal radicará do minimalismo de recursos usado por Satie em cada composição; as notas parecem ser usadas apenas para quebrar o silêncio e não para se assumirem como som. «A música dele contém também percursos harmónicos e relações modais que desafiam o ouvido e que, por isso mesmo, se tornam muito apetecíveis de explorar. Também as texturas harmónicas que por vezes aparecem nas composições de Satie apontam para sonoridades com uma grande afinidade com o jazz.»

Muita da riqueza musical que escutamos em “Hundred Umbrellas” reside na hábil escolha do ambiente rítmico e da atmosfera de cada tema, equilibrando o rigor e a elegância do material escrito com a espontaneidade dos solos improvisados, nos planos formal e harmónico, e preservando a identidade de cada tema, com o personagem “Erik Satie” a pairar por perto. Um aspeto que logo ressalta é ausência do piano do xadrez instrumental utilizado, tanto mais que Satie compôs maioritariamente para as 88 teclas. José Menezes explica a opção, tomada logo nos alvores do projeto: «Fi-lo de forma a poder sentir-me mais livre e talvez menos condicionado pela forma habitual de ouvir a música de Satie que é precisamente… ao piano. Essa opção veio a revelar-se muito interessante em termos criativos porque me estimulou, me obrigou a imaginar formas diferentes de ouvir a música de Satie, especialmente em termos tímbricos.» A inclusão da guitarra aportou possibilidades criativas que certamente não teriam ocorrido com o piano como instrumento harmónico principal.

“Gnossiene #4” a secção rítmica dá a entrada, e logo surge o motivo central, exposto em uníssono por saxofone e trompete. Primeiro ótimo solo de Menezes, logo outro de Delgado. Em “Fils des Étoiles” os dedilhados suaves do guitarrista abrem alas para uma melodia luminosa que se desenvolve a partir dos diálogos entre a guitarra e a dupla de sopros, ela própria de dinâmica variável, a partir dos quais brotam os solos. Em “Gymnopédie #2/Erik Shakty” (referência ao grupo de fusão que na década de 1970 – após a dissolução da primeira formação da Mahavishnu Orchestra) juntou o guitarrista John McLaughlin, o percussionista Zakir Hussain e outros músicos indianos) a atmosfera tranquila agita-se a dado momento, adquirindo um groove vívido de que brotam excelentes solos de Gonçalo Marques, Menezes (aqui recorrendo ao soprano) e de Delgado, com o seu notável uso das eletrónicas acopladas ao seu instrumento.

Na animadíssima “Redite (from “Trois Morceux en Forme de Poire)”, o trompetista ganha asas e o guitarrista em boa hora puxa pelo seu lado mais rock’n’roll. Barretto chega-se à frente e assina uma intervenção de grande nível. Porventura a obra mais célebre de Satie, “Gymnopédie #1”, é aqui objeto de notável releitura; primeiro Delgado expõe os traços basilares, dando o mote para as indagações. O coletivo carreia então a peça para outros territórios, com espaço para ótimos solos (fundou memória especial o do trompetista), retomando depois a melodia-base e desembocando num final quase-latino. A mais angulosa e atonal “The Last Umbrella” exibe um vigor devedor do rock, com toda a banda ligada à corrente, metaforicamente ou não, com contrabaixista e baterista em ligação próxima. Barretto assina, com solo soberbo, o estertor da peça.

“Hundred Umbrellas” é um álbum pleno de elegância e frescura, e que se escuta com muito agrado.

  • Hundred Umbrellas

    Hundred Umbrellas (Edição de autor)

    José Menezes

    José Menezes (saxofones soprano, alto e tenor); Gonçalo Marques (trompete); Mário Delgado (guitarras elétricas); Carlos Barretto (contrabaixo); José Salgueiro (bateria e percussão)

Agenda

25 Março

Duke Ellington’s Songbook

Sunset Jazz - Café 02 - Vila Nova de Santo André

25 Março

Mário Laginha com Orquestra Clássica da Madeira

Assembleia Legislativa da Madeira - Funchal

25 Março

The Rite of Trio

Porta-Jazz - Porto

25 Março

Sofia Borges (solo) “Trips and Findings”

O'culto da Ajuda - Lisboa

25 Março

George Esteves e Kirill Bubyakin

Cascais Jazz Club - Cascais

25 Março

Katerina L’Dokova

Auditório ESPAM - Vila Nova de Santo André

25 Março

Kurt Rosenwinkel Quartet

Auditório de Espinho - Espinho

26 Março

Giotto Roussies Blumenstrauß-Quartett

Cantaloupe Café - Olhão

26 Março

João Madeira, Carlos “Zíngaro” e Sofia Borges

BOTA - Lisboa

26 Março

Carlos Veiga, Maria Viana e Artur Freitas

Cascais Jazz Club - Cascais

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