Daniel Levin / Rodrigo Pinheiro / Hernâni Faustino: “Rhizome” (Phonogram Unit)

Daniel Levin / Rodrigo Pinheiro / Hernâni Faustino: “Rhizome” (Phonogram Unit)

Phonogram Unit

António Branco

“Rhizome” é a estreia discográfica de um trio formado pelo pianista Rodrigo Pinheiro, o contrabaixista Hernâni Faustino e o violoncelista norte-americano Daniel Levin. A música que fazem, (quase) completamente improvisada em conjunto, é viciantemente serena e contemplativa. O álbum tem selo da Phonogram Unit e a jazz.pt já o escutou.

Voltemos ao dicionário, amigo de tantas horas. Em botânica, rizoma é um caule subterrâneo alongado, tuberoso ou tuberculoso, com disposição mais ou menos horizontal e folhas reduzidas a escamas; produz ramificações e raízes estendidas separadas, não resultando diretamente da planta original. Nos anos 1980, os filósofos Gilles Deleuze e Felix Guattari também se entregaram à definição de “rizoma” num outro plano, entendendo-o como uma rede não hierárquica de informação e comunicação que pode derivar de múltiplas fontes não hierárquicas de influência ou atração, sem organização predeterminada ou coerência unificadora. O conceito pode ser aplicado à música praticada pelo trio constituído pelo violoncelista Daniel Levin (músico com um lo, o pianista Rodrigo Pinheiro e o contrabaixista Hernâni Faustino neste seu disco de estreia, “Rhizome”, editado pela Phonogram Unit. É o pianista quem o diz à jazz.pt: «O nome parece-me ser uma boa analogia para a música que fizemos em trio: há várias de ideias sempre a serem desenvolvidas por cada um dos músicos, muitas das vezes independentes.»

A oportunidade para juntar este trio surgiu em 2022, quando pianista e contrabaixista se deram conta de que Daniel Levin iria estar em Portugal durante algumas semanas, tendo logo endereçado um convite para tocar a solo na série de concertos que a Phonogram Unit estava a organizar na Cossoul e para um concerto em trio na SMUP, na Parede, onde puderam perceber quais seriam as possibilidades que uma formação deste tipo poderia concretizar. Em outubro, aproveitaram a estada em Portugal do violoncelista para gravar em estúdio a música que agora emerge em “Rhizome”.

Com origens musicais distintas e uma ampla gama de experiências estilísticas, o trio oferece uma paleta sonora particular, que também radica na empatia e nos anos de trabalho conjunto de dois terços da formação. Rodrigo Pinheiro e Hernâni Faustino conhecem-se particularmente bem de outros contextos – desde logo o seminal RED Trio, mas também noutros projetos como Clocks & Clouds, Lisbon Free Unit, Book of Spirals, Suspensão Ensemble, trio com Lotte Anker, quinteto de Nobuyasu Furuya, apenas para citar alguns – e a sua ligação, sendo telepática, jamais é previsível. Os dois juntam-se agora, pela primeira vez, ao violoncelista norte-americano Daniel Levin, um dos mais renomados praticamente do instrumento no domínio do jazz mais estimulante e da música improvisada afiliada. E a sua presença aporta graus de liberdade decisivos para o que nos é dado a escutar: «O facto de o Daniel usar microtons torna a música do trio bastante orgânica e com cores muito diferentes», acrescenta Pinheiro.

Os três músicos renunciam deliberadamente à preparação prévia e ao consenso estilístico, tomando antes parte em intrincados jogos de dissonâncias, dinâmicas, justaposição e contraponto sonoro em tempo real, que enriquecem a música. Mais do que respostas, o que aqui encontramos são indagações acerca da improvisação em conjunto e também do modo como nós, ouvintes, a percecionamos. Voltemos à perspetiva de Guattari: «Um ponto do rizoma poderá ser conectado a qualquer outro, o que não será formalizado com base em uma metalinguagem lógica ou matemática; implicará a implementação de diversas associações coletivas de enunciação.» Não será difícil ligar esta ideia à improvisação no seu estado de liberdade final raramente encontrado – não sob a forma de um estilo, mas como escape da forma e do significado convencionais.

A compatibilidade entre os músicos parece assentar precisamente na aceitação da singularidade e da diferença entre as vozes individuais no processo de construção conjunta. A música do trio, calma e introspetiva, espelha uma dimensão camerística depurada, atenção à relojoaria mais íntima e uma fluidez assinalável. «Tendo em conta a formação, há claramente um caráter de música de câmara que me agrada muito. Há também uma preocupação harmónica constante em todo o disco, sempre com um diálogo constante entre os três músicos», sublinha Rodrigo Pinheiro. Em notas de capa, o jornalista, ensaísta e poeta (e, recorde-se, primeiro presidente da Jazz Journalists Association) Art Lange avisadamente nos lembra as palavras do poeta George Oppen quando este se referiu aos “valores líricos” – a urgência da expressão.

Excetuando um, todos os temas são completamente improvisados. Violoncelo e contrabaixo assumem papéis mais melódicos (mas também) harmónicos, ficando a cargo do piano as estruturas harmónicas, sempre com bastante espaço de manobra para as deambulações dos outros músicos. «Julgo que existe no disco uma preocupação no grupo em manter e respeitar o espaço e o silêncio, em reduzir o diálogo individual ao mínimo essencial», explica Pinheiro. Se momentos há em que violoncelo e contrabaixo formam um núcleo uno que contrasta o piano, noutros é o maior dos cordofones que se aproxima do piano. Em “Rhizome” a primeira coisa que nos é dada a escutar são as notas esparsas, quase etéreas, do piano. Entram violoncelo e contrabaixo e logo se instala uma atmosfera de câmara, intrigantemente serena, que se desenvolve de forma pausada. Escutamos Pinheiro sempre em busca de novas ideias (usando as teclas e as entranhas do instrumento), Faustino sóbrio e possante, e Levin a desenhar linhas que se aproximam ou distanciam, delas se elevando surpreendentes fragmentos melódicos.

Mais nervosa é “Mindpath”, com os instrumentos num frémito; quando tudo parece acalmar, ressaltam mais claras as conexões que se estabelecem entre os três músicos, sempre em modo de escuta mútua, num caminho, diria, telepático (a que talvez se aluda no título da peça). Alguns dos melhores momentos do álbum estão bem guardados no dramatismo tão pungente quanto enigmático de “Chol” (tema que Levin propôs que o trio gravasse), que de certa forma encontra continuidade nos contornos mais planantes de “Terrarium”, com as notas decantadas do piano, o ranger das madeiras a lembrar-nos da organicidade da proposta, o emprego do arco a aditar gravidade; convergindo para um silêncio tonitruante. “Mercúrio”, a peça mais extensa do disco, com duração superior a 17 minutos, vai conhecendo diferentes estágios, mais agitados ou mais abstratos num tricot a seis mãos; a certo instante, o violoncelo de Levin parece adquirir algum protagonismo, que logo se dissipa numa teia de relações.

“Rhizome” é um álbum belo, exigente e desafiante, que reclama sucessivas audições para se fruir na plenitude.

 

  • Rhizome

    Rhizome (Phonogram Unit)

    Daniel Levin / Rodrigo Pinheiro / Hernâni Faustino

    Daniel Levin (violoncelo); Rodrigo Pinheiro (piano); Hernâni Faustino (contrabaixo)

Agenda

04 Outubro

Carlos Azevedo Quarteto

Teatro Municipal de Vila Real - Vila Real

04 Outubro

Luís Vicente, John Dikeman, William Parker e Hamid Drake

Centro Cultural de Belém - Lisboa

04 Outubro

Orquestra Angrajazz com Jeffery Davis

Centro Cultural e de Congressos - Angra do Heroísmo

04 Outubro

Renee Rosnes Quintet

Centro Cultural e de Congressos - Angra do Heroísmo

05 Outubro

Peter Gabriel Duo

Chalé João Lúcio - Olhão

05 Outubro

Desidério Lázaro Trio

SMUP - Parede

05 Outubro

Themandus

Cine-Teatro de Estarreja - Estarreja

06 Outubro

Lucifer Pool Party

SMUP - Parede

06 Outubro

Marta Rodrigues Quinteto

Casa Cheia - Lisboa

06 Outubro

Ben Allison Trio

Centro Cultural e de Congressos - Angra do Heroísmo

Ver mais