Guimarães Jazz 2022
Guimarães entre o espiritual e a era espacial
O Guimarães Jazz é o melhor pretexto para um fim-de-semana-sportif no norte de Portugal, numa das cidades mais bonitas do país, para aproveitar os dias de sol típicos do verão de São Martinho. De 10 a 19 de novembro voltamos trocar bilhetes por um aluvião de vida. Vejamos o que é que o esmerado auditório do Centro Cultural Vila Flor tem para oferecer. E mais além...
O chamado “jazz vocal” é um território movediço entre a música popular e o jazz. Dianne Reeves não lança um disco desde 2013 e por isso a curiosidade sobre o que está a fazer neste momento é total. Há dez anos a música de Reeves falava prosaicamente de amor, num funk, soul lento. Dez anos depois os adeptos das canções leves e suaves terão que ir ouvir para poderem saber o que é que a pós-pandemia miss Reeves tem para dizer.
E porque regressar é bom, faz-nos sentir que continuamos a participar neste movimento belíssimo do adiamento da morte, Archie Shepp regressa a Portugal e ao palco onde esteve em 2015.
Pouco mais temos que fazer do que reconhecer a sua grandeza e de insistir que, a par de Coltrane, o músico é um dos gigantes do jazz. A sua preocupação em devolver a africanidade ao jazz levou-o a uma carreira ultra consistente, com discos excelentes em todas as décadas, incluindo o “Let My People Go” de 2021, em duo com Jason Moran, ensopado em blues flutuados por um jazz sentido e intenso. Com 86 anos o saxofonista continua em forma com chispa e na corrente das ideias políticas e sociais do nosso tempo de modo a que a sua música ainda é um discurso vivo e importante feito através da música.
Vem com o seu “quarteto europeu”, com músicos franceses, país que o acolheu bem e onde gosta de viver. Shepp colabora com a cantora Marion Rampal desde 2012 (“I hear the Sound”, da big band Attica Blues Orchestra). No projeto “There is Love” apareceu um companheiro musical de Marion de longa data, o pianista, Pierre-François Blanchard. E como um grupo é feito de relações pessoais, somou-se o contrabaixo de Michel Benita.
“I am the music you call jazz. I am the nigger. I’m jazz”, abreviou.
Sábado como já tem sido habitual, nos últimos anos do Guimarães jazz, teremos dois concertos. Começamos à tarde (17h), no pequeno Auditório do CCVF, que tem dado palco a concertos de fim de tarde que apresentam projetos menos conhecidos. O Benjamin Koppel, Anders Koppel (filho e pai) e Kristoffer Sonne Trio é um grupo dinamarquês e alemão ainda sem registos gravados. Os nórdicos tocam uma música que tenta fundir a tradição clássica europeia com o jazz.
À noite (21h30), no grande auditório, o concerto que escolheria, se o mago da lâmpada só me desse um bilhete: Hamid Drake tem um som de bateria muito próprio. Ao incorporar com muita elegância a percussão africana, as seriações indianas e o descompasso afro-cubano construiu um universo pan-rítmico que o destacaram como um baterista e o instalaram como colaborador regular de músicos como Peter Brötzmann, Matthew Shipp, Ken Vandermark, Pharoah Sanders e William Parker.
Alice Coltrane é uma música notável que talvez não tenha tido o destaque que merecia por carregar a pesada herança do apelido do marido. Mas a sua discografia tem várias obras primas como o “Monastic Trio”, “Ptah The El Daoud”, “Journey in Satchidananda”, “Transfiguration”, “Divine Songs” e mesmo o seu último registo editado, as gravações devocionais de 1981 “Kirtan: Turyia Sings”, tem uma intensidade espiritual impressionante. Para tocar a sua música é preciso muito mais do que dedos: uma entrega ascética profunda para poder entrar no transe pacificador que a sua música requer e professa. Este parêntesis Aliciano foi necessário para introduzir o concerto que Drake propõe para o auditório de Guimarães onde o percussionista mergulha no mundo espiritual de Alice. Este é o primeiro projeto liderado pelo baterista de Chicago e foi pensado como um espetáculo completo com dança, declamação, música e que não viverá só de composições da harpista mas também de um tema de John Coltrane e de outras composições que procurarão tratar desta forma de pensar o jazz.
Este parêntesis aliciano foi necessário para introduzir o concerto que Drake propõe para o auditório de Guimarães onde o percussionista se propõe mergulhar no mundo espiritual de Alice. Não haverá muitos músicos no panorama atual do jazz em quem reconhecemos total autenticidade para mergulhar no universo espiritual da música da harpista. Em “Turiya: Honoring Alice Coltrane” iremos mergulhar no caldeirão místico da harpista norte-americana, que abriu novas portas para o jazz. Um reencontro ao vivo com uma música que propicia o enlevo.
O septeto que Drake montou para este projeto inclui Ndoho Ange na dança e declamação, Jamie Saft no piano, Fender Rhodes e teclados, Jan Bang na eletrónica Pasquale Mirra no vibraphone e percussões, Joshua Abrams no contrabaixo e guembri e Thomas De Pourquery no saxofone, voz e declamação.
No domingo, dia 13 e último desta primeira semana de festival, teremos também dois espetáculos. No primeiro, à tarde, ouviremos uma das boas ideias do Guimarães, que é muito mais do que um palco onde vêm tocar músicos: todos os anos oferece aos alunos da ESMAE a oportunidade de trabalhar com músicos diferentes dos seus professores, num contexto profissionalizante. Na edição de 2022, será o trompetista e compositor Victor Garcia – também de Chicago - o responsável por ensaiar e dirigir a big band, cumprindo-se assim um dos objetivos pedagógicos deste evento. Garcia, um músico que alinha na equipa afro-latina do jazz, tocará também com o seu quinteto no último dia do festival.
À noite, outra das parcerias habituais em que se desafia o coletivo Porta Jazz a preparar um espetáculo original e único, que cruze formas artísticas. A apresentação desta criação é feita na Black Box do Centro Internacional das Artes José de Guimarães o convidado é o guitarrista Mané Fernandes, e contará com João Grilo no piano, uma coreógrafa e 3 vozes.
A folga é curta e na terça-feira dia 15 à noite (21h30) somos novamente chamados para ir à música. O Guimarães estreia uma nova parceria com o Centro de Estudos de Jazz da Universidade de Aveiro, e apresenta o grupo distinguido com o prémio para o Melhor Ensemble e Melhor Arranjo Original no II Concurso Internacional de Jazz da UA; será a nossa vez de ir fazer o exame ao trabalho da faculdade ouvindo o trio THEMANUS, criado por Afonso Silva, Eduardo Carneiro e Ricardo Alves (saxofone, guitarra e bateria) que tenta incorporar diferentes referências estilísticas como o drum’n’bass e a música ambiental no jazz.
No dia seguinte, quarta-feira dia 16, à hora noturna do costume, repetem-se os princípios, mas desta feita com uma parceria iniciada há cinco anos entre o Guimarães Jazz e o coletivo portuense Sonoscopia. É por demais evidente a função social do festival que assim participa de forma ativa e entusiasmada e potencia não só as escolas do Norte de Portugal como a ESMAE e a Universidade de Aveiro como também os projetos e associações de músicos como o Sonoscopia e o Porta-jazz (já lá iremos) e como ainda as estruturas locais como a Orquestra de Guimarães (idem). A parceria com o Sonoscopia procura mostrar a interpenetração de práticas musicais entre o jazz e a experimentação.
Nesta 31.ª edição ouviremos um duo entre o baterista australiano Will Guthrie e o português David Maranha que neste contexto tocará órgão. Um encontro entre a veemência do órgão e a criação de padrões na bateria que promete surpreender os menos preparados para as músicas nas fronteiras do jazz.
Na quinta-feira é a vez da Orquestra de Guimarães se afundar em jazz. A jovem instituição orquestral vimaranense irá interpretar, sob a direção musical de Carlos Garcia, o álbum “Ibéria”, de Manuel de Oliveira, compositor e guitarrista também da terra. Em palco, para além de toda a orquestra e das guitarras de Manuel de Oliveira e Miguel Veras estará a bateria de Quiné Teles e ainda dois reconhecidos músicos espanhóis Jorge Pardo nos sopros e Carles Benavent no baixo elétrico.
Não é difícil convencer David Murray a tocar em Portugal pois a sua paixão pelo nosso país levou-o a comprar há vários anos uma casa no centro histórico de Sines. Tal como Archie Shepp, David Murray também não será surpreendido pela beleza de Guimarães pois já tocou neste palco no ano anterior ao de Shepp. Regressa oito anos depois para nos mostrar o que mudou e o que permaneceu. Na altura veio em quarteto, agora regressa em octeto, uma formação que o notabilizou nos anos 80 do século passado e que inicialmente incluía nomes como Henry Threadgill, George Lewis ou Butch Morris. A formação deste Octet Revival é composta por músicos de diferentes gerações e até linguagens estilísticas e inclui o inevitável Hamid Drake no lugar que era de Steve McCall, o contrabaixista Brad Jones em vez de Wilber Morris, Aruan Ortiz no piano, Roman Filiu no saxofone alto, Mario Morejón Hernàndez ‘El Indio’ no trompete, Denis Cuni trombone e Mingus Murray guitarra.
Será um olhar para trás para ver o que é que mudou, numa revisitação progressiva e futurista, de um saxofonista multifacetado, que tem um som único no saxofone e uma quantidade impiedosa de registos e de projetos.
No sábado, dia 19, também como habitualmente, esperam-nos dois concertos, o da tarde e o da noite. O primeiro, como também é praxe, do grupo do músico convidado para trabalhar com os jovens da ESMAE e que anima os after-hours e jam sessions: Victor Garcia, trompetista e compositor que ainda no início de setembro vimos tocar no palco do Pritzker Auditorium em Chicago. Pertence à nova geração de músicos da cidade e filiou-se no jazz com raízes latinas, com o Chicago Afro-Latin Jazz Ensemble (luckyly the clue is in the title). O seu grupo é composto por jovens que votam no mesmo partido: o porto riquenho Josh Ramos no contrabaixo, Ben Lewis no piano, Greg Artry na bateria e Jill Katona na voz
E para que o Guimarães Jazz encerre à Guimarães Jazz é necessária uma orquestra. Será na noite de sábado (21h30), o mundo voltará a mudar para que possa ficar igual.
O jazz orquestral é um dos ex-libris deste festival. Tendo em consideração que a orquestra é um formato criado na tradição musical europeia, não é de estranhar que seja a Europa uma das grandes fontes de orquestras de jazz, consubstanciada por várias orquestras de enorme qualidade, entre as quais a Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM) que virá fechar o pano ao Vila Flor.
Apresentará o concerto “Jazz in the Space Age” em que vai prestar homenagem, a George Russell, interpretando o disco com o mesmo nome. Russel divide com Stan Kenton e Gil Evans a excelência na composição e arranjo nos anos 60 do século passado, no que se convenciounou chamar de “Third Stream”. O LP “Jazz in the Space Age”, editado em 1961 é um dos seus discos fundamentais. Gravado em duas sessões, com Bill Evans e Paul Bley nos pianos, esta suíte em três partes "Chromatic Universe" mistura a improvisação livre com passagens escritas que ainda hoje soam interessantes e atuais. "Dimensions," o segunto tema do LP foi descrita pelo compositor como uma “sequência de associações livres de ambientes naturais do jazz”.
"The Lydiot" dá mais espaço aos solistas e "Waltz From Outer Space," tem uma sonoridade orientalista.
A acompanhar a OJM estarão dois pianistas emergentes da cena jazzística norte-americana, Ethan Iverson e David Virelles. Na batuta estará Pedro Guedes.
O festival não se resume ao palco, mas teremos as habituais jam sessions que dão vida à viva noite da cidade e poderemos desfrutar da preenchida agenda cultural vimarenese, que hoje tem uma oferta muito relevante em vários polos para além do Centro Cultural Vila Flor, como o CIAJG, A Fábrica ASA o Centro Para Assuntos da Arte e da Arquitetura, o recém inaugurado Teatro Jordão e a Garagem Avenida e muitas pérolas inda fora dos radares turísticos como o Museu Arqueológico da Sociedade Martins Sarmento e o Alberto Sampaio, o centro histórico bonito e os “churrasquinhos” da Cervejaria Martins. Os bilhetes costumam esgotar, por isso quem planeia um fim-de-semana-sportif deverá cuidar destes papelitos online.
Atualização [a 2 de novembro]:
A organização anunciou que a atuação de Archie Shepp foi cancelada, por motivos de saúde; no seu lugar irá atuar o quarteto liderado por Linda May Han Oh.