Funchal Jazz
Com o público na mão
Sem arriscar e jogando os seus trunfos de sempre, o festival madeirense apresentou o mais recente projecto de Chick Corea, The Vigil, e lembrou Miles Davis com um grupo de estrelas em que despontou Larry Coryell, Miles Smiles. Um sucesso.
Este ano (e este mês de Julho) na sua 14ª edição, o Funchal Jazz manteve a sua assumida vertente popular, com uma programação que combinou nomes grandes da cena “mainstream”, vozes (que fugiam ao jazz convencional) e artistas da terra. Mais uma vez com grande sucesso e muito público a acorrer ao belíssimo espaço do Parque de Santa Catarina durante as três noites do evento.
O anfiteatro natural, com vista sobre a cidade do Funchal e o mar, acolheu na primeira noite o histórico pianista Chick Corea. O músico apresentou-se com o seu actual grupo, The Vigil, que combina juventude e veterania. Ao piano e aos teclados electrónicos de Chick Corea juntou-se o saxofone tenor do inglês Tim Garland, a guitarra eléctrica de Charles Altura, o contrabaixo de Christian McBride, a bateria de Marcus Gilmore e as percussões de Luisito Quintero.
O sexteto arrancou a actuação com “Hot House”, clássico be bop da autoria de Tadd Dameron: uma abertura de jazz tradicional em que todos solaram, sobressaindo um solo incrível de McBride. Seguiu-se “Planet Chia”, com Garland a atacar o sax soprano (e a flauta, no final) e Altura mudando-se para a guitarra acústica (o maior destaque deste tema). Com o seu som forte, bem definido, e uma imaginação inesgotável, McBride acabava por roubar a maior parte dos aplausos.
O concerto acabou por atravessar várias fases da carreira de Chick Corea e o período de fusão foi evocado com o tema “Portals to Forever”. Aqui, Corea aplicou-se nos sintetizadores, numa sonoridade próxima dos Return to Forever. Assistiu-se neste tema a um interessante diálogo entre o sax tenor e a guitarra eléctrica, com McBride no baixo eléctrico.
Nostalgia versus melancolia
Uma vez que, nesta primeira noite, estava programado apenas um concerto, a banda teve direito a um segundo “set”. Com um cabelo desalinhado, barba hirsuta e mantendo um permanente rosto inexpressivo, Charles Altura foi um dos destaques da segunda metade do espectáculo, com um solo magnífico na guitarra de caixa. De novo o contrabaixista McBride esteve em alta - pelo meio de um dos solos até teve a ousadia de incluir uma citação de “A Love Supreme”.
Para o final ficou reservada a interpretação de “Humpty Dumpty”, o culminar de uma óptima prestação colectiva, com um solo de Gilmore muito aplaudido. O concerto fechou com um “encore”, o clássico “Spain”, que se serve do “Concierto de Aranjuez” de Joaquín Rodrigo. Apesar de reservado ao longo de todo o concerto, Corea acabou por interagir com o público, fomentando uma despedida entusiasmada.
A segunda noite abriu com um grupo co-liderado por um madeirense. O guitarrista Bruno Santos levou o seu Santos-Melo 4to ao palco do Funchal Jazz com um convidado especial, o saxofonista John Ellis. À guitarra de Santos juntaram-se Filipe Melo (piano), Bernardo Moreira (contrabaixo) e Bruno Pedroso (bateria). O quarteto nacional desenvolveu uma base estável, para o convidado americano poder brilhar.
Moreira e Pedroso, dois dos mais seguros e requisitados instrumentistas da cena nacional, consolidaram uma estável dupla rítmica. Santos mostrou estar à altura do desafio e da sua guitarra nasciam linhas sólidas, que o piano de Melo complementava.
O alinhamento do concerto destacou temas originais do saxofonista convidado, que se mostrou à vontade: bastante elástico a atacar o saxofone tenor; mais contido quando se aplicava no sax soprano. O momento mais surpreendente do alinhamento terá sido a interpretação de “Everything Means Nothing to Me”, original de Elliott Smith.
Nesta curiosa versão o quinteto impôs uma toada melancólica, destacando-se o entendimento entre piano e guitarra: diálogo permanente, entre uníssonos e desvios, numa óptima comunicação. O convidado foi, naturalmente, a estrela que mais brilhou, mas o concerto funcionou como homenagem a um filho da terra, Bruno Santos, que além de músico com um percurso consistente, é director pedagógico da Escola Luiz Villas-Boas, do Hot Clube de Portugal.
Flamenco cubano e muita Broadway
A noite terminou com a actuação da cantora espanhola Buika. Acompanhada simplesmente de piano e percussão, o seu canto encheu o Parque de Santa Catarina e conquistou rapidamente o público. Numa latitude sonora entre a música afro-cubana e o flamenco, foi com um vozeirão e muita garra que deslumbrou todos os presentes. O primeiro momento de maior entusiasmo surgiu com a interpretação do clássico cubano “Siboney”, tendo a intensidade continuado altíssima. Não faltou um tributo a Chavela Vargas, com “El Ultimo Trago”, e Concha Buika despediu-se do público madeirense com “Ojos Verdes”, no “encore”.
Para a abertura do terceiro serão foi apresentado o mais recente disco de Jacinta, “Recycle Swing”. Na companhia de Pedro Costa (piano), Álvaro Rosso (contrabaixo) e Filipe Monteiro (bateria), a cantora não reciclou o swing, mas revisitou vários “standards” dourados da Broadway. O início do espectáculo replicou o alinhamento exacto do disco: “You Stepped Out of a Dream”, “They Can’t Take That Away from Me”, “Yesterdays” e “How Long Has This Been Going On”.
Este quarto tema foi o primeiro grande momento da actuação, que passou ainda por clássicos como “Too Darnn Hot” (ao contrário do continente, o tempo madeirense esteve ameno), “Our Love is Here to Say” ou a atípica “Feeling Good”. Sem grandes espaços para solos dos instrumentistas, coube à voz toda a responsabilidade, e esta cumpriu.
O sorriso de Miles
Para encerrar o festival chegou o quinteto Miles Smiles, colectivo que reúne Wallace Roney (trompete), Rick Margitza (sax tenor), Larry Corryel (guitarra), Ralphe Armstrong (baixo eléctrico) e Alphonse Mouzon (bateria). Reunido com o objectivo de reinterpretar a obra de Miles Davis, o grupo começou por abordar a fase eléctrica, ainda que numa toada contemplativa, numa evocação de “In a Silent Way”.
Passou depois para um “groove” assumido, ancorado no baixo eléctrico. O trompete de Roney assumiu a frente, o tépido saxofone (tenor e soprano) ficou na sombra, a guitarra de Coryell funcionou como ponto de equilíbrio, a bateria de Mouzon sempre enérgica. O baixo, esse, esteve sempre demasiado presente, com o som mais elevado em relação os restantes instrumentos.
O repertório passou por temas como “Footprints”, “’Round Midnight” e “Seven Steps to Heaven”: bateria e baixo sempre em ritmo intenso, guitarra hendrixiana, sax como o elemento mais apagado. Para o “encore”, muito pedido, ficou reservada “Time After Time” – não a canção popularizada por Chet Baker, mas o tema pop de Cindy Lauper, revitalizado por Miles em meados dos 80s.
Foi um final meloso para um festival que apostou em nomes certos, pouco arriscou e concentrou a sua atenção no público. O certo é que conseguiu, mais uma vez, alcançar o objectivo de chegar às pessoas.