Sines em Jazz
O outro festival de Agosto
O outro evento de jazz em tempo de praia e sol teve, ao contrário do de Lisboa, uma programação fundamentalmente portuguesa. E se em Sines se destacaram os noruegueses 1982, outros momentos altos foram nacionais, como o Coreto Porta-Jazz, os Ogre de Maria João e o Quarteto de Carlos Martins…
Sines é uma cidade de muita música. O Festival Músicas do Mundo (FMM) é um dos principais eventos mundiais neste género (mesmo com a péssima imagem que usa para divulgação) e o de jazz, sendo um parente mais novo, vai seguindo um caminho ascendente. Nesta sua sétima edição programou quase exclusivamente músicos nacionais, com propostas para um calmo final de Verão numa cidade praieira.
O festival oferece (literalmente) dez concertos em três dias – os últimos de Agosto – a quem queira largar o Facebook e vir até ao magnífico edifício do Centro de Artes da cidade. Para que este modelo funcione bem para o público é fundamental que os concertos comecem rigorosamente a horas e que os músicos cumpram o tempo estipulado, o que nem sempre aconteceu, fazendo com que, por vezes, se entrasse em “overdose”. Ainda assim, a possibilidade de ver e ouvir os concertos em três locais diferentes – auditório, rua e pátio –, as noites cálidas e o apoio alcoólico da “casa preta” do Centro impediram que o excesso de música fosse dilacerante.
Não foi desta
Começou com a casa cheia e com um músico da terra, Rui Vinagre, que procura – e cito – «novos caminhos para a guitarra portuguesa». Já sabemos que o instrumento é capaz de tocar em contextos mais exploratórios (ex.: Nuno rebelo), mas ainda está por provar que consiga jazzar. A experiência Carlos Paredes / Charlie Haden não é um bom exemplo e o “guitolão” de António Eustáquio não é uma guitarra portuguesa tradicional, pelo que a curiosidade era grande para com o grupo Trilhos. Só que… ainda não foi desta.
O Trilhos usa composições de grande sabor popular, leves, extremamente acessíveis e bailantes, com a guitarra a expor os temas e a não conseguir libertar-se da sua linguagem muito específica e fechada nos solos, nem adicionar uma nova expressividade ao modelo jazzístico tradicional. Ou seja, não é um projecto que impressione pela novidade ou por uma expressividade particular, se bem que a sua música pudesse ser exportada em grandes quantidades, pois corresponde a uma ideia muito vendida de Portugal (de xailes negros “fashion”) que, de resto, foi brilhantemente explorada no início dos Madredeus.
Funk sem funk
Seguiu-se a Funky Bones Factory, uma banda também nacional de músicos com carreira estabelecida: quatro trombones, um sousafone (tocado por Sérgio Carolino, o mesmo dos TGB), guitarra eléctrica e bateria. Os Funky Bones funkam, como o próprio nome indica, mas substituem grande parte da matriz repetitiva do funk, aquela que faz o “groove”, por linhas melódicas simples, embora angulares.
O resultado final não entusiasmou musicalmente, ao que o desajustado som da sala ajudou: os trombones não tinham recorte nem ataque, o sousafone inundava os baixos, a bateria soava separada e a guitarra estava demasiado presente e desligada da banda. O funk foi pouco sincopado e o jazz demasiado fácil, com os solos presos a discursos evidentes e sempre com as mesmas dinâmicas (talvez pelas limitações de m). Já ouvimos, com alguns destes músicos, grupos bem mais vibrantes.
De despontante a desapontante
O primeiro dia encerrou com Zorra, um quinteto português (o festival aposta no equilíbrio de nomes conhecidos do público com novas propostas) com bateria, contrabaixo, trompete, guitarra eléctrica e vibrafone. Dizemos grupo, mas na verdade soou a Marco Pereira & Friends, de tal forma a guitarra eléctrica estava presente e normalmente acima do som da banda, com discursos pinkfloydianos pouco interessantes.
De despontante a formação passou a desapontante, entregando o concerto menos estimulante da noite (e já com menos público na plateia, por não ter aguentado a sobrecarga), cheio de estribilhos e soluções improvisacionais já ouvidas: parada e resposta, imitações, dobragens; decalques de procedimentos jazzísticos levados à letra. Este Zorra tem, no entanto, um caminho definido e que pode vir a ser muito interessante – o mesmo caminho por onde já passou o E.S.T, se bem que com uma linha musical diferenciada. O problema é que, neste momento, ainda é igual a muitos outros projectos.
Bom “feeling”
A sessão 2 teve um início fabuloso e desta vez com um som de sala irrepreensível. Arrancou tão bem e tão plenamente que é pena que não tivesse ficado por ali. Não que os restantes concertos estragassem o primeiro, mas este foi de tal forma completo, alegre e belo que pedia uma suspensão para ficar preservado na memória e para que o seu bom “feeling” perdurasse.
O grupo norueguês que abriu a noite foi uma escolha inusitada: música totalmente improvisada com uma instrumentação invulgar – harmónio, violino de cordas duplas (tradicional norueguês) e bateria. 1982 soa a uma continuação da “Petite Messe Solennelle” de Rossini, com uma enorme beleza lírica, ar, descontração campestre, tempo e ideias musicais. Instalou um ambiente de enorme beleza e harmonia. De repente, o mundo ficou bem e os problemas desapareceram. A música foi tocada com a delicadeza de um grupo de câmara (a bateria nunca se sobrepondo ao violino) e com a alegria da improvisação, de estar a criar uma coisa no momento, de integrar o erro, o inesperado, a surpresa e disso fazer música.
A estranheza da instrumentação dá ao trio uma vida própria e interessantíssima. Os seus executantes são tecnicamente soberbos e capazes de transformar esse saber em música nova. Neste aspecto, a Noruega parece-nos – a nós, que estamos aqui tão longe – um caso de estudo, pois dota os seus músicos de uma enorme capacidade técnica com o mesmo empenho com que os empurra para fora de soluções prefabricadas. O ambiente criado foi de tal forma construtivo que, mesmo quando o saxofone de Carlos Martins (que aquecia no camarim) começou a entrar no palco, integrou-se no concerto com bonomia.
Os noruegueses chegaram mesmo a sair da sala e a ir até ao pátio improvisar com a transmissão vídeo. Tratou-se, enfim, de uma improvisação séria, comprometida com o momento, alegre e positiva. Grande concerto em Sines, o melhor do festival. À frente destes 1982 está Nils Økland no violino “hardanger” (rabeca de cordas dobradas que vibram por simpatia), músico com uma carreira vasta que já gravou para a ECM, para a Rune Grammofon e que agora está na Hubro, uma nova “label” norueguesa a que é preciso estar atento.
Sigbjørn Apeland tocou o harmónio, a melódica e outros teclados invulgares e Øyvind Skarbø esteve na bateria – não tendo esta o mesmo exotismo dos outros instrumentos, pareceu igualmente especial. São uma banda que vale a pena ouvir mais e mais vezes. Apesar de ter sido uma proposta menos alinhada com a matriz popular do festival, manteve o público entusiasmado e este aplaudiu-o de pé e exigiu-lhe um regresso ao palco. Dentro da programação mais consensual do Sines em Jazz esta foi uma actuação inesperada que resultou na perfeição: foi como se, de repente, o DJ de uma discoteca algarvia da moda espetasse com Joy Division no prato e toda a gente começasse a dançar com mais satisfação. Uma excelente ideia do programador, Carlos Seixas!
Primeira linha
Interveio depois o Quarteto de Carlos Martins, com Alexandre Frazão na bateria, Mário Delgado na guitarra e Carlos Barreto no contrabaixo. O grupo é sobejamente conhecido e todos os seus membros são da primeira linha. A música percorre caminhos mais convencionais sem, por isso, ser revisionista ou retrospectiva: trata-se de um jazz assente na escrita que parte para a improvisação sobre essa traça melódica inicial com a enorme capacidade de todos os executantes.
Bons temas de Martins, simultaneamente sofisticados e simples. Os solos de todos estes veteranos foram interessantes de seguir e nunca sentimos que estávamos a ouvir soluções enlatadas ou que os participantes estavam a refugiar-se em ideias feitas: a seriedade e a competência estiveram muito acima da média. Carlos Martins continua a soprar lindamente no seu tenor e Carlos Barretto impressionou com o seu som imperial e seguríssimo. Uma banda que merece um reconhecimento mais alargado e mais concertos, numa altura em que este tipo de jazz tem tanta aceitação popular.
Sem “handicaps”, mas com censura
Seguindo este molde, e dando ao público de Sines uma porta fácil e lustrosa para o jazz, a noite encerrou com Kiko & The Jazz Refugees. O grupo do “crooner” português entregou com competência uma selecção de música açucarada, extraída do seu último disco. Felizmente, vão longe os tempos em que dizíamos “é bom, para português”; hoje os músicos têm estofo técnico para cumprir sem “handicaps” os seus projectos musicais.
Hugo Raro no piano, AP Neves na guitarra, Carl Minnemann no baixo eléctrico e Acácio Salero na bateria fazem uma base muito coesa e densa para Kiko vocalizar – sem artificialismos exagerados ou emotividades fabricadas – temas que oscilam entre o hard bop e o funk. Num mercado ávido por “jazz vocal”, como forma de compensar a camisa de forças em que as rádios e as editoras colocaram a música popular, Kiko é o nosso único cantor masculino, com uma voz – e uma arte - capaz (para quem gosta do género), mas sem elementos particulares ou soluções distintivas que o destaquem no contexto internacional.
O serão terminou com um momento insólito em que tudo o que poderia ter sido pedagógico no concerto dos 1982 foi desbaratado: alguns jovens músicos foram convocados para uma “jam session” no pátio do edifício. Juntou-se um tal de Gilles, de origem francesa, a tocar berimbau de boca. Foi curioso ver a inversão de papéis: os jovens tocavam um jazz mais conservatorial e o senhor, mais idoso, arriscou criar algum interesse e originalidade, fosse pela estranheza do instrumento como pela sua aproximação à música. Pois foi rapidamente excluído por alguém que lhe pediu para se calar, assim se retirando da música o seu único elemento realmente motivador e censurando aquilo que se dizia ser uma “jam” aberta a quem quisesse tocar.
Fiquei a pensar que cabe aos jovens músicos decidirem se querem ser mais um dos milhões que sabem tocar o Cantaloop (e calar os Gilles deste mundo) ou se preferem arriscar e improvisar de facto – mesmo que (ou especialmente por) ainda estarem a um nível formativo – para tentarem criar música nova e estimulante. Naquela noite deixaram passar uma oportunidade para serem, efectivamente, músicos de jazz.
Uma nova linha de Tordesilhas
Em Portugal o futebol absorve grande parte do espaço público e por isso fez bem a organização do festival em antecipar o concerto previsto para a hora da bola no terceiro e último dia do festival. Saíram prejudicados o português João Frade e o brasileiro Munir Hossn, que tiveram pouco público a assistir ao concerto antecipado para as sete da tarde e uma amplificação pouco cuidada.
O duo de acordeão e guitarra / baixo estava empenhado em descobrir um caminho original, com canções rítmicas e melodiosas. Frade deixou melhores recomendações que Munir: o músico brasileiro tem uma técnica admirável tanto na guitarra como no baixo, mas quando improvisava não era capaz de acrescentar interesse: acelerava o tempo, transpunha a tonalidade e debitava malabarismos técnicos impressionantes, mas não saía do conforto da matriz harmónica nem era musicalmente cativante.
Por vezes ficou a vontade de lhe pedir que não stressasse a música e que a deixasse respirar um pouco. Expectáveis, as canções do duo partiam de ritmos tradicionais brasileiros e portugueses e queriam nessa mistura (toda a música é uma mistura...) descobrir uma nova linha de Tordesilhas que tudo unisse pelas melhores razões. Pela instrumentação invulgar (baixo e acordeão) e pela vontade de fazer diferente, poderão perfeitamente descobrir coisas interessantes no futuro.
Coragem e inteligência
A sessão da noite recomeçou depois do jogo com Maria João & Ogre, o novo grupo de cantora. Depois de anos a interpretar melodias meladas que me afastaram da sua música (mas que aproximaram milhares de ouvintes), Maria João reconstruiu o seu som e apresentou uma nova onda musical. Limpou muitos dos bichi-bichis doces e abrasileirados que marcaram o seu período áureo com Mário Laginha e canta agora de forma mais dura, interessante e viva. O domínio que tem da voz, o trabalho que transparece e a sua enorme capacidade como improvisadora são argumentos para um reencontro com a cantora de todos aqueles que, como eu, deixaram de a ouvir.
Estando eu já farto das discussões sobre se uma determinada prática musical é jazz, meio jazz ou um quarto de jazz, reconheço que Maria João continua num percurso fortemente impulsionado por uma matriz de música popular, pontuada pela improvisação (como Neil Young, Scott Walker e David Sylvian, só para citar nomes do pop/rock que improvisam), sem que isso retire interesse à sua música e seja menos recompensador para quem gosta de ouvir jazz.
O Ogre parece ainda estar em construção: o grupo interage pouquíssimo com a cantora e entre si e tem ainda um compromisso mal resolvido entre a electrónica e o jazz acústico (com o piano de Júlio Resende a puxar para trás), com a bateria em modo Robocop de Joel Silva, metade acústica e metade electrónica, a parecer desnecessária, pois são o computador e os sintetizadores a disparar a maior parte do sustento rítmico.
Em termos performativos o concerto foi totalmente suportado por Maria João (e talvez não devesse ser assim), que parece também estar a meio caminho entre um passado recente (a roupa, os movimentos) e um novo percurso. Fiquei com uma admiração sincera por este novo trabalho da cantora, pela coragem de recomeçar, arriscar e – de certa maneira – reconstruir até o seu patuá. Desde 1984 que não tinha tanto prazer em a ouvir e ver a cantar.
A atmosfera sonora destes Ogre tem influências bjorkianas, com uma presença saturada da electrónica e ritmos assertivos e extremamente simples, mas Maria João acrescenta-lhe a sua maneira de cantar única, a improvisação construindo assim uma lógica diferenciada. É uma grande cantora, corajosa e musicalmente inteligente, capaz de montar com qualidade um mundo sonoro completamente diferente daquele que a acompanhou nos últimos anos. E isso é admirável. Respect!
Been there…
Seguiu-se o Rui Teixeira Group, um quinteto de sax, guitarra, piano, baixo e bateria alinhado com o jazz mais conservador. Composições simples, solos competentes, estrutura derivada do modelo clássico, mas sem vozes próprias.
A abordagem recordava o jazz eléctrico dos anos 1980 (Scofield, etc.), não se distinguindo do cenário que engloba milhares de grupos semelhantes no mundo inteiro, mas que é um sinal muito positivo da capacidade que Portugal já tem de produzir grupos tecnicamente muito competentes e musicalmente capazes. Não sendo um projecto marcante (não evita a sensação de “been there, seen that”), deixou uma óptima impressão, pelo bom entendimento em palco e pela fluidez do discurso.
O centro da beleza
O Coreto Porta-Jazz encerrou o Sines em Jazz 2013. A “big band” surgiu de um movimento musical do Porto cuja expressão mais visível é a Porta-Jazz, associação que agrupa alguns dos melhores músicos portugueses da nova geração. A magnífica escrita e a muito interessante orquestração do saxofonista João Pedro Brandão resultam numa música orquestral de agradável audição.
A execução e os solos foram do mais capaz, provando que o Porto voltou a ter uma cena jazzística forte, diversa e aberta: quando as pessoas se unem em torno de um propósito comum, são competentes e trabalhadoras. As composições são sofisticadas, mas o modo como a distribuição é realizada pelos 11 músicos faz, do meu ponto de vista, o centro da beleza da música de Brandão, apagando os vestígios de algum barroquismo ou das influências berberes da pauta e construindo uma música que se auto-sustenta na sua beleza e no seu enorme sentido musical.
Seria injusto destacar solistas, pois quase todos foram estimulantes de seguir. O Coreto é uma banda com pilares musicais assentes em vários terrenos que soa lindamente e com música nova e interessante.
E assim terminou o Sines em Jazz, um festival condensado que puxa pelo corpo e pela alma (os concertos começavam às 21:30 e dificilmente acabavam antes das 2 da manhã) e que aposta fortemente na divulgação do jazz nacional, mostrando que há vários projectos escondidos que precisam de visibilidade para evoluírem. Dentro de uma programação popular surgiram grupos já conhecidos e outros menos, oferecendo à assistência uma preambulação jazzística louvável. E o público apareceu sempre e ficou. Esperemos que cresça e evolua.