David Maranha & Will Guthrie
Sempre no vermelho
Foi o mais surpreendente concerto da série Isto é Jazz?, mas a sala esteve meio vazia. Fez mal quem não foi à Culturgest, porque a música esteve sempre no limite, colocando-nos em estado de transe.
É verdade que o ciclo Isto é Jazz?, programado por Pedro Costa (Clean Feed / Trem Azul), nunca apresenta propostas óbvias. Indo de encontro à interrogação que dá título ao ciclo, vão passando pela Culturgest músicos e projectos que trabalham nas fronteiras do jazz e da música improvisada, desafiando convenções e estereótipos. Contudo, o duo de David Maranha e Will Guthrie terá sido uma das propostas mais inesperadas.
O músico português, que vem trabalhando um som de órgão saturado, teve na edição de “Marches of the New World” o seu pico de maior visibilidade e colabora regularmente com o guitarrista Manuel Mota, uma ligação que se prolonga nos grupos Dru e Curia. Com Mota partilha, além da improvisação, a procura de um universo sonoro particular. Tal como Mota também, Maranha já conseguiu definir esse universo individual.
Will Guthrie não será um nome imediato para o público português, mas este baterista australiano residente em França participa num disco recentemente editado pela Clean Feed, integrando o trio The Ames Room com Jean-Luc Guionnet e Clayton Thomas.
O Pequeno Auditório da Culturgest não encheu, registando-se cerca de meia casa. Fez mal quem não foi, pois naquele palco aconteceu uma das mais surpreendentes actuações que o ciclo já promoveu. Maranha despejou o seu órgão sujo, manipulado o teclado com uma alta intensidade e acrescentando-lhe efeitos, aumentando assim o grau de impureza, já de si elevado. Do outro lado, Guthrie respondia com uma percussão vertiginosa.
A dupla manteve os níveis de intensidade altíssimos, mantendo o tempo acelerado. Entre Maranha e Guthrie sentiu-se um envolvimento orgânico e, apesar da toada muito estável, evitando desvios, foi visível essa ligação. Se o som de Maranha pode habitualmente ser associado a uma dimensão hipnótica, a adição da bateria levou a música para um estado de transe. Sempre no limite, sempre no vermelho, esta foi uma verdadeira viagem.