Hugo Antunes / Carlos “Zíngaro” / Miguel Mira
Uma matiné muito especial
Depois de o contrabaixista ter tocado em duo, separadamente, com o violinista e com o violoncelista, foi no final da tarde do passado dia 31 de Outubro a vez de actuarem a três em mais um concerto do Espaço APAV & Cultura. Ouviu-se grande música.
Há uns meses, Hugo Antunes (contrabaixo, foto acima) convidou Carlos “Zíngaro” (violino) e Miguel Mira (violoncelo) para dois duos nas MagaSessions, uma sala de concertos a desafiar o limite entre o público e o privado com sessões mensais e intimistas em plena Avenida da Liberdade. Desta vez, Antunes convidou os dois músicos para se apresentarem em trio no Espaço APAV & Cultura. Apesar de poder parecer um local improvável, os mais atentos já repararam que a APAV tem funcionado, também numa lógica mensal, como mostra do circuito nacional de jazz e improvisação (mas não só).
Na tradição erudita ocidental, o quarteto de cordas é uma das formações mais recorrentes, tanto pelo seu estatuto como pela extensa obra que foi escrita com o propósito de ser interpretada por esse conjunto. Na música contemporânea e improvisada, é normal estabelecerem-se comparações entre pequenas formações exclusivamente compostas por cordas e esse quarteto clássico. Mas a comparação acaba aí: nada nos poderia preparar para tal destruição dos papéis clássicos associados a esta classe de instrumentos, a não ser o próprio historial dos músicos em questão.
Carlos “Zíngaro” é, definitivamente, um dos nomes mais incontornáveis da música improvisada. Precursor do género em Portugal e colaborador recorrente de alguns dos mais interessantes músicos que o mundo já viu nascer, “Zíngaro” tem desenvolvido um trabalho sempre coerente e relevante na música mais criativa. Miguel Mira, contrabaixista na pele de um violoncelista, é um dos instrumentistas mais requisitados na cena free portuguesa, desdobrando-se em inúmeras colaborações, sendo a mais notória com Rodrigo Amado. De Portugal para Bruxelas para o mundo, Hugo Antunes tem sido uma peça muito importante da nova geração de músicos criativos.
O concerto começou com um apalpar de terreno muito normal em colaborações raras, como foi o caso. Os músicos foram dando espaço à música que ia sendo criada, respirando sem pressas, mas já com todo o virtuosismo à vista. O trio optou durante grande parte do concerto pelo uso dos arcos (levando mais longe a (in)comparação com os quartetos de cordas clássicos), mas nem assim Miguel Mira quis controlar os seus instintos mais “baixos”, jogando à baliza para manter as bolas dos colegas dentro do campo.
Na mesa dos adultos
Sempre inventivo, Mira funcionou como aglutinador capaz de contextualizar os muitos discursos chutados por “Zíngaro” e Antunes. Este último foi ainda responsável por algumas fintas ao mestre “Zíngaro”, com todo o respeito intergeracional, mas a afirmar com toda a segurança o seu lugar “na mesa dos adultos”.
Se (mais uma vez), ao ouvir um quarteto de cordas clássico, somos imediatamente remetidos para o espaço europeu, uma das características mais atraentes da música exploratória é a sua capacidade de imaginar e criar novas geografias. Um dos momentos mais bonitos desta matiné aconteceu precisamente quando os músicos trocaram os arcos por um pizzicato repetitivo e quebrado. Música tradicional de um grupo étnico essencialmente dedicado à pesca proveniente da Costa Este da Atlântida, de Braavos ou qualquer outra civilização perdida.
A figura austera de “Zíngaro” emana concentração, como se cada concerto fosse o momento mais importante da sua vida. Ainda assim foi possível vislumbrar, no final das músicas, breves instantes de sorriso na sua cara, porque por mais experiente que seja o músico é sempre possível surpreender-se.
O concerto manteve-se enérgico até ao fim, sendo ainda de destacar o arrasador trabalho de arco de Antunes a soltar múltiplos gritos das suas cordas. No final contrastava o ar impecável do contrabaixista com o seu arco (com inúmeras crinas partidas) vandalizado pela intensidade da música que ali aconteceu.