Guimarães Jazz
Verão de São Martinho
Um dos mais importantes do País, o festival de Guimarães teve na sua edição de 2013, na primeira metade de Novembro, tão bom jazz quanto aquele a que nos habituou. Foram dias de sol e noites de música…
O Festival Guimarães Jazz tem dois argumentos de peso para ser forçoso: Guimarães e Jazz. Como o próprio nome indica, a coisa é simples - propostas musicais de grande interesse e uma cidade que nos faz sentir magnificamente. Quem compra o bilhete continua a poder usufruir de um espectáculo extraordinariamente bem planeado, que vai da programação ao som de palco, ao extremo bom gosto da iluminação e da cenografia, à qualidade gráfica dos materiais, ao conforto, à simpatia e à pontualidade. Tudo funciona na perfeição e a máquina que planeia e produz o Guimarães jazz é um exemplo de competência.
A cidade continua uma das mais extraordinárias do País e parece melhorar ano após ano: clara, densa e viva, com escala humana. Não temos a sensação de entrar num local parado no tempo, embalsamado, mas sim de partilhar a vida da cidade que se oferece tranquilamente ao visitante, cheia de uma luz fria própria do Verão de São Martinho.
Forte e intenso
Julgamos que devido a problemas orçamentais, só foi permitido à jazz.pt fazer a cobertura da segunda semana do festival. Atrasados para o primeiro concerto (por via de uma embraiagem não colaborante), pudemos ainda assim ouvir uma performance notável daquele que era uma das maiores expectativas da programação deste ano: Andrew D’Angelo. O jovem saxofonista é uma das apostas de Ivo Martins, que o trouxe pela segunda vez e desta feita com uma banda formada propositadamente para o festival.
Música fantástica, com o quarteto a tocar forte e de forma intensa. D’Angelo sopra com imensa desenvoltura desafiando classificações (clássico/free). Conhecíamo-lo em trio com Trevor Dunn e Jim Black e o grupo que veio a Guimarães mudou completamente a forma como a música soa: destaque para o contrabaixo de Ben Street (que também regressou a Guimarães) e a bateria de Allan Mednard, que veio em substituição de Gerald Cleaver. O trombone de John Egizi foi menos entusiasmante, duplicando o sopro do líder e solando sem brilho especial.
D’Angelo dividiu-se entre o saxofone alto - com um som muito interessante e original, que de alguma maneira pega na força e no ataque de Ornette Coleman mas retira-lhe o lamento “bluesesco” – e o clarinete, com uma expressão também própria e reconhecível. É impossível classificar o jazz de D’Angelo – a sua música poderia figurar num festival mais radicado nas vanguardas jazzísticas e o certo é que em Guimarães não teve confronto.
Pouca vida
A quinta-feira trazia dois grandes nomes, o que é uma das matrizes deste festival: a presença de figuras cimeiras da história do jazz. E Jack DeJohnette é um baterista incontornável na história mundial deste idioma: presente no “Bitches Brew” de Miles Davis, no Keith Jarrett Trio e em outras formações estruturais, é um músico inteligente, elegante, com um uso original dos pratos da bateria. Não é, porém, um compositor, ou melhor, não escreve de forma refinada, e não é um arranjador cuidado: compõe de forma simples e directa na procura de melodias interessantes. Os seus discos são feitos em grande parte pela qualidade dos grupos que monta para os tocar e esse terá sido um dos problemas do concerto de Guimarães: o seu grupo actual tem George Colligan no piano e nas teclas (também já fora convidado pelo Guimarães Jazz para apresentar a sua música) e Jerome Harris no baixo eléctrico, mas nem um nem outro são particularmente excitantes.
A inclusão de Don Byron era um argumento acrescido e razão mais do que suficiente para conduzir durante uns bons quilómetros: o clarinetista (e também saxofonista) é um músico de excepção, arrojado, anguloso, sofisticado. Contudo, mesmo com Byron em palco a música soou lenta, mole, com pouca vida. Em parte porque DeJohnette não estava nos seus dias e também porque a banda não inseria carga na música. O sopro parecia o único a querer puxar pelo grupo na tentativa de criar intensidades.
Harris deu-nos pouco: foi competente, sem dúvida, mas faltou-lhe expressividade. Daquele baixo não saem diamantes e quando vocalizou foi igualmente vulgar. Colligan dividiu-se entre várias teclas, oferecendo sons que vão do piano clássico à electrónica retro (tipo Weather Report), com algumas escolhas de registo duvidosas. DeJohnette foi lento, sem força, solando de forma muito pouco criativa. Com músicos como o baterista ou Byron é quase impossível a música ser mveis de qualidade que a grandeza dos nomes poderia fazer esperar.o, sem carga, solando de forma muito pouco criativa. Com mo e ná, mas também foi claro que aquela foi uma das tais noites. Assistiu-se a um concerto apenas suficiente, sem chama. Um duo com Don Byron teria sido certamente outra coisa.
Acessível, mas inteligente
Alguns programadores portugueses são respeitados pelos músicos, que os ouvem e que valorizam a sua opinião. Esta deferência dos músicos reconhece os programadores que não se limitam a “comprar” espectáculos já montados. Assim se explica que músicos como Ken Vandermark aceitem estrear em Portugal um novo grupo ou que o palco do Centro Cultural Vila Flor seja o cenário escolhido para a “première” de dois grupos novos: depois do concerto inaugural da segunda semana em que Andrew D’Angelo inaugurou o seu quarteto, foi a vez de o mundo ouvir pela primeira vez o Kenny Werner / David Sanchez Quintet e assim brindar o público do festival com este prelúdio.
Sanchez e Werner são dois músicos com algumas semelhanças na vontade de fazer música dulcíssima e muito acessível, sem com isso sacrificarem a inteligência dos solos. São também contrastantes: Sanchez usa elementos simples e concisos, enquanto Werner prefere o adorno e a procura dos múltiplos ângulos das melodias. Os temas pareceram precisar de algum polimento e foco, e foram por vezes demasiado longos: estavam a criar o seu território em frente de uma plateia de quase 800 pessoas, o que impressiona (somado ao facto de todas estas presenças se darem em noite de selecção de futebol).
A bateria de Henry Cole fez um segundo solo pobre e cheio de ideias feitas, enquanto o contrabaixo de Johannes Weidenmueller não solou durante duas horas e foi pena, porque parecia poder ter interesse. Na percussão, o brasileiro Edson “Café” da Silva coloriu timbricamente o grupo, com uma imensa variedade de sons, ora enchendo demasiado os espaços livres, ora acentuando bem os movimentos da música. “Café” da Silva é um músico com uma carreira enorme, que vai de Chico Buarque e Milton Nascimento a David Byrne, Mick Jagger e Stevie Wonder, ou a Dave Liebman e Randy Brecker. Tem uma linguagem brasileira polida e o seu solo não apresentou novidade. Bom concerto de uma banda em formação mas com material musical com qualidade.
Cultura são couves
E porque há certas coisas que, felizmente, não mudam, a noite de encerramento apresentou uma “big band”: a HR Big Band da Rádio de Frankfurt, conduzida por Jim McNeely, tendo como solista convidado John Abercrombie. Os países ricos têm uma política cultural e isso traduz-se na existência de entidades como teatros, bibliotecas, orquestras, etc. E quando dizemos existência, usamos a palavra na sua acepção mais rica e não apenas enquanto ser, estar e permanecer: são forças vivas e dinâmicas que permanentemente procuram soluções para melhor servirem os seus propósitos.
Um erro português é pensar-se que os ricos têm orquestras porque são ricos, quando a realidade há muito que demonstra o contrário: são ricos porque, entre outras coisas, têm orquestras. É a formação que faz o país e não o contrário. Nós somos pobres porque temos três auto-estradas que passam em Lousada e porque, mais do que aprender, nos importa o piche que alisa os caminhos. Cultura são couves.
A orquestra trouxe até Guimarães um projecto musical que junta o trabalho do compositor e magnífico orquestrador Jim McNeely (que começou por se destacar, ainda muito novo, como arranjador da Mel Lewis Jazz Orchestra e mais tarde com a Carnegie Hall Jazz Band, a DR Big Band e a Metropole Big Band) às composições e à eloquência solística de Abercrombie. Conta ainda com a grande qualidade técnica e de colectivo dos seus executantes e as boas capacidades solísticas de alguns deles.
Um conjunto de instrumentistas rigoroso, alinhado até à perfeição, estruturado sobre uma grande secção de metais (13 sopros com quatro trompetes, quatro trombones e cinco saxofones/flautas) que sustenta todo o seu som, muito metálico. Somando-se o contrabaixo, a bateria, o piano e a guitarra eléctrica ficamos com uma ideia desta máquina sonora.
Não é particularmente swingante nem ritmicamente muito animada, mas é capaz de construir várias camadas que se vão envolvendo, trocando, sobrepondo, na entrega das melodias. Sofisticada, muito contemporânea, não é uma orquestra bailante, mas sim um grupo jazzístico inteligente e complexo. Os excelentes arranjos de McNeely garantem música interessante sem resvalar para o hollywoodesco, com um enorme bom gosto nos arranjos.
Abercrombie estava espartilhado pela escrita e pela orquestra (que não é uma unidade flexível, nem pode ser), mas teve bons momentos. Não é o contexto ideal para se ouvir a sua fluência na guitarra, mas foi interessante observar a releitura dos seus temas, integrando o seu som no grupo.
Alguns dos membros da HR foram bastante interessantes a solar, sendo que a maioria se limitou a cumprir com a sua função, o que já não é mau. Fechou em grande a 22ª edição do Guimarães Jazz, um festival incontornável não só em Portugal mas num contexto mais alargado, que passa também pelo país vizinho. Esperemos que nunca acabe.