Luís Vicente Trio
Trompete do mundo
O trio do trompetista Luís Vicente apresentou-se na noite da passada sexta feira no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém, num concerto em que se celebrou a música como espaço privilegiado de cruzamento de referências e comunicação de emoções.
Um dos trunfos que fazem do jazz a mais fascinante das músicas é a sua histórica propensão para simbioticamente contaminar e ser contaminado. Ele próprio o resultado de uma síntese alquímica a partir de múltiplos ingredientes, ao longo da sua história de quase um século tem aberto portas a outras músicas e sido resistente a várias formas de purismo fundamentalista que negam a sua própria essência.
É indesmentível que desde os seus alvores o jazz tem incorporado na sua matriz afro-americana original elementos de outras linguagens musicais e inoculado risco e imprevisibilidade em sonoridades dos quatro cantos do planeta. É uma tendência inexorável, potenciada pela globalização, ainda que atenta crivagem seja necessária para expurgo das habituais propostas turístico-burguesas infestantes.
Nota prévia a propósito do trabalho multidimensional que tem vindo a ser desenvolvido por Luís Vicente, um dos mais criativos trompetistas a surgir no panorama do jazz e da música improvisada nacionais nos últimos anos e em franco processo ascensional.
Movimentando-se com igual à vontade em diferentes tabuleiros estéticos – e cruzando-os num mesmo jogo –, Vicente explorou no muito recomendável disco de estreia (“Outeiro”, na JACC Records, 2012) polinizações entre a sua própria visão musical e os universos carreados pelos outros dois músicos que compõem o seu trio: o contrabaixista italiano Francesco Valente e Oori Shalev, percussionista de origem israelita mas baseado atualmente em Berlim.
Foi esta a formação que se apresentou na noite da passada sexta-feira, 24 de janeiro, no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), num concerto que marcou o arranque da temporada jazzística deste complexo à beira rio.
Apesar da repartição democrática das contribuições e das interações tripartidas, Vicente assumiu desde cedo natural protagonismo – sendo que praticamente tudo o que aconteceu gravitou à sua volta –, funcionando como fiel na gestão das partes compostas e dos momentos de improvisação.
O trompetista esteve em bom plano – alternando (por vezes num espaço de segundos) entre um registo límpido e outros mais rugosos e sussurrados –, exibindo a sua notável habilidade para misturar técnicas e evocar distintas referências (de atmosferas “milesianas” a texturas devedoras do trabalho de luminárias do instrumento nos nossos dias, como Nate Wooley).
No contrabaixo, Valente – aqui mais exposto do que noutras formações que integra – foi garante de pulsação e de um “groove” eficaz. Menos conseguida foi a prestação de Shalev, genericamente parco em ideias (soltou-se mais nas percussões várias do que enquanto esteve aos comandos do kit tradicional de bateria). Não obstante, a secção rítmica soube ser a rampa de lançamento para os voos de destino incerto empreendidos pelo líder, improvisador de créditos firmes.
Fixaram memórias as linhas hipnóticas de “Penumbra”, com o contrabaixo carnudo a contrastar com o som do trompete, a que Vicente acoplou surdina, e, sobretudo, a conseguida versão de acentuado travo mediterrânico de “Golden Heart”, tema original de Don Cherry, lenda também muito dada a experimentações com as músicas do mundo.
Luís Vicente apresentou-nos apenas uma das vertentes do seu trabalho, uma proposta de espetro alargado, indicada para quem gosta de ser surpreendido, reiterando motivos de sobra para que continuemos a seguir atentamente os seus passos, que não se esgotam, longe disso, neste projeto.