Simões / Chagas / Guiomar / Sousa
Um momento especial
Perdeu quem – porque ocupado a conversar em voz alta – não percebeu que estava a acontecer algo de precioso. A estreia do jazz no Pausa na Linha, da Parede, resultou em música da maior qualidade e revelou um grupo que muito promete.
Tocar num espaço que não tem tradição de concertos de jazz é sempre um risco, e sobretudo quando não se trata propriamente de um auditório. Um risco em termos de atracção de público e de verdadeira conexão de quem está presente com a música que está a ser interpretada. Foi esse o caso, na última noite de Janeiro, com a ida do quarteto formado por Fernando Simões (trombone), Paulo Chagas (saxofone alto, flauta), Fernando Guimar (guitarra) e Rui Sousa (baixo eléctrico) ao Café Pausa na Linha, da Parede.
A assistência deste estabelecimento do concelho de Cascais era pouca no início, mas o certo é que a sala foi enchendo à medida que o relógio se deslocou das 22h00 para a meia-noite. Nesse aspecto, a estreia do jazz no Pausa na Linha (que antes abrira portas a encontros de poesia, debates e outras actividades da jovem associação Cultura no Muro, integrada na direcção da vizinha Sociedade Musical União Paredense) foi bem-sucedida.
O que não correu muito bem, e é um factor irritante quando se sabe que o jazz e a música improvisada estão cada vez mais obrigados a apresentar-se em bares, porque são géneros de música que não interessam às centenas de centros culturais e cineteatros do País (ou seja, às autarquias, que continuam a considerar que a sua missão cultural é organizar concertos de Tony Carreira e quejandos), foi o outro lado da questão… Designadamente, o falatório em voz (muito) alta daqueles que ali foram tomar café ou uma cerveja com fundo musical.
Numa altura da nossa vida colectiva em que tanto se questiona a interiorização de uma cultura democrática, percebe-se que o que falta primeiro é civilidade e respeito. Pelos outros, os que querem ouvir e sobretudo os que tocam, tratados como profissionais do entretenimento e não como artistas. Triste sina, a dos nossos músicos de jazz.
Pior ainda quando a música que está a acontecer é de grande qualidade e tem características que determinam uma audição atenta. O quarteto em causa é de gestação recente e propõe num formato quase camerístico (o que para muito contribui a ausência de bateria) uma mistura de jazz com funk e rock, regra geral introspectiva, contemplativa, mas ocasionalmente com rasgos de intensidade, contribuindo as características pessoais e os “backgrounds” de cada um dos integrantes para o resultado conjunto.
Quatro contributos
Rui Sousa é a alma por detrás do grupo Zappanoia, especializado na interpretação do difícil repertório de Frank Zappa, e só dizer isto revela muito quanto ao trabalho musical que prestou – seja em termos de sustentação rítmica, que foi bastante sólida, como de capacidade criativa a improvisar, sempre pertinente e oportuna.
Fernando Guiomar tem um percurso no pop-rock, sendo o líder da banda Trape-Zape. Cultor de uma música instrumental de grande sofisticação, tem um estilo pessoal, uma inventividade e uma técnica que o tornam num dos nossos melhores guitarristas. Nos últimos anos, foi entrando cada vez mais nos domínios da improvisação. Uma recente actuação em duo com Carlos “Zíngaro” na série Sabaduos confirmou-o como um novo e cativante valor nesta área.
Paulo Chagas é outro caso excepcional. Multi-instrumentista (toca igualmente oboé, clarinetes sopranino e baixo, saxofone soprano e teclados electrónicos) com estudos clássicos, vem do rock progressivo e fez um trajecto no jazz de fusão e na música livremente improvisada, tendo pertencido a formações históricas como Colectivo Orgástico, Miosótis e Px-Beat. Hoje, encontramo-lo no PREC, no Wind Trio ou na companhia de Tania Giannouli, Marcello Magliocchi, Bruno Duplant e Lee Noyes. A forma como fraseia é de uma inteligência tão rara quanto surpreendente em contexto intuitivo e espontâneo: nenhuma nota está a mais ou a menos.
Fernando Simões nada deve a outros grandes trombonistas portugueses - está ao mesmo nível de um Eduardo Lála ou um Paulo Perfeito. A sua formação filarmónica faz-se sentir, mas quanto mais liberdade encontra para se expressar mais está confortável. Nesse sentido, é o trombone mais free jazz que temos.
E o que se ouviu na Parede, feito por estes especiais talentos? Uma música circular, com “loops” de motivos e repetições pulsativas, mas que gradual ou subitamente mudava de direcção. Os factores de desvio eram os mais subtis – bastava uma pequena ideia de alguém para que este jazz à flor da pele ocupasse outro lugar. O que implicava a máxima atenção de cada um aos demais e uma empatia que não é fácil de encontrar, além de uma muito saudável resistência ao facilitismo e ao estereótipo.
Tudo o que estes músicos são esteve reflectido nas quatro longas improvisações da noite. Uma malha de guitarra (acústica, mas amplificada) que lembrava vagamente os Genesis ou uma situação de “overblowing” saxofonístico que nos remetia para John Zorn. Um “slapping” de baixo à maneira dos Funkadelic ou o rugido visceral do trombone de Paul Rutherford.
Está aqui um colectivo com pernas para andar, e pena foi que quem assistiu não percebesse que se estava ali a viver um momento especial. Pior para eles.