Funchal Jazz
Jazz no Éden
Dando início a um novo ciclo, o festival da Madeira apostou em 2014 num dos cartazes mais fortes de sempre, que incluiu um alargado programa de iniciativas. Na memória perduram os excelentes concertos de Ambrose Akinmusire, Vijay Iyer e Jason Moran.
Assim que, ao longe, se começa a divisar a silhueta da ilha da Madeira, assalta-nos reiterado espanto. O belo e imponente lugar, que emergiu das profundezas do oceano numa primordial explosão vulcânica, conserva cores que vão do «cinzento ao doirado, do doirado ao azul-índigo», como se lhe refere um enfeitiçado Raul Brandão em “As Ilhas Desconhecidas”. Lá estava ela, inebriante, a «montanha entreaberta saindo do mar diante de mim, a escorrer azul e verde».
Este é um ano de viragem na história de um festival prestigiado, mas que agora se guinda ao topo dos eventos nacionais de jazz. O Funchal Jazz não morreu como vaticinaram algumas vozes locais, constatando-se, ao invés, a evidência de que surgiu revigorado e pronto para iniciar uma nova fase da sua existência.
Tendo como cenário, até 2008, os belos Jardins da Quinta Magnólia e, desde então, o Parque de Santa Catarina, o Funchal Jazz, promovido há catorze anos pela Câmara Municipal da capital insular, já recebeu muitos nomes de relevo do jazz, nas suas diferentes declinações estéticas. Descontando-se algumas apostas discutíveis (mas legítimas) e um lado muito vincado de “happening” social, o certo é que o festival madeirense foi fazendo o seu caminho paulatino de consolidação e afirmação às escalas nacional e, por que não, internacional.
A edição de 2014 do Funchal Jazz Festival (que ostentou a denominação da unidade hoteleira patrocinadora, o vetusto Belmond Reid's Palace, fundado em 1891 pelo escocês William Reid e que no passado albergou, entre outros ilustres hóspedes, Winston Churchill e George Bernard Shaw) contou com uma nova equipa de produção, da qual avulta o nome de Paulo Barbosa (antigo colaborador da jazz.pt) como diretor artístico.
À sua visão conhecedora e ao seu espírito empreendedor se devem alguns dos melhores momentos jazzísticos que a ilha testemunhou na última década. Tão equilibrado quanto desafiante – procurando evitar estereótipos decerto mais mediáticos, mas artisticamente inócuos –, a edição deste ano convocou figuras de primeira linha do jazz atual e tem, claramente, a sua marca diferenciadora.
Foi mantido o calendário habitual, concentrando as principais atividades nos dias 3, 4 e 5 de julho. O modelo base de programação do evento também não se alterou: dois concertos por noite (o primeiro a começar às 21h30 e o segundo às 23h00) no agradável Parque de Santa Catarina, a que se seguiram, pela noite dentro, animadas “jam sessions” no Scat Music Club & Restaurant, no Passeio do Lido.
Eis aqui um breve relato do muito que se viu e ouviu em três dias repletos de música, mas não só…
Jason Moran
Quase dois anos depois de avassaladores concertos com os Bandwagon na Culturgest, em Lisboa, e em Angra do Heroísmo, retomámos o contacto com Jason Moran – indubitavelmente um dos mais relevantes pianistas de jazz da atualidade –, desta feita no mais intimista dos formatos. Mais uma vez, Moran mostrou a razão pela qual é único na forma como processa múltiplas referências da história do jazz, destilando algo de muito pessoal.
Moran equilibra de modo absolutamente notável a vertente cerebral de releitura criativa da tradição do género com outra que não prescinde da espontaneidade e da intuição como veículos fundamentais da sua abordagem. A cada momento, surpreende ao enxertar no seu fluxo discursivo – por vezes torrencial – múltiplas (e inesperadas) citações, estabelecendo um forte vínculo memorial com a tradição do jazz, recriando-a.
Nesta sua excelente prestação a solo, o pianista alternou momentos de intenso lirismo com outros mais turbulentos do ponto de vista rítmico, num caleidoscópio emocional que assenta numa ligação íntima ao instrumento, que é uma espécie de prolongamento natural do seu próprio corpo.
Revisitou ícones – especialmente um dos seus “heróis” do piano, Fats Waller (escutaram-se leituras de “Honeysuckle Rose”, “Handful of Keys” e “The Sheik of Araby”) –, mas também Duke Ellington e o recentemente desaparecido Horace Silver. Dissertou longamente à volta dos blues. A sua música fervilhou de referências, que se sucediam vertiginosamente, desenvolvendo motivos, desmembrando harmonias, subvertendo melodias. Utilizou elementos rítmicos pré-gravados (como bateristas hutus do Ruanda), para com eles dialogar em tempo real. Moran foi comovente, hipnótico, sedutor, frenético, num recital que talvez beneficiasse com outro tipo de intimidade.
Ben Allison Group
O segundo concerto da noite esteve a cargo do novo quarteto do contrabaixista Ben Allison, músico que se tem notabilizado pela pluralidade de projetos episódicos que vem liderando, designadamente em termos da sua produção discográfica. Sempre a navegar sem perder de vista o cânone jazzístico – a sua linha de costa –, Allison é um organizador sonoro de méritos sobejamente atestados, que sabe – na esteira “ellingtoniana” – tirar o maior partido das características dos músicos que consigo colaboram.
Neste quarteto, faz-se acompanhar pelo trompetista Jeremy Pelt (reconhecido líder por direito próprio, com uma dúzia de títulos gravados em seu nome, para além de inúmeras colaborações), pelo excelente guitarrista Steve Cardenas e pelo baterista Rudy Royston, os dois últimos habituais comparsas do contrabaixista em diversas formações anteriores.
O quarteto apresentou música retirada de “The Stars Look Very Different Today” (do final do ano passado), movendo-se por vezes segundo coordenadas não muito distantes de um certo jazz-rock, sobretudo por via das injeções de eletricidade ministradas por Cardenas. Nota particular para as intervenções solistas deste e de Pelt, com a sua sonoridade arrendondada, suportadas por uma secção rítmica sólida, apesar das soluções discutíveis a que Royston por vezes recorreu.
Destacou-se a dolência tão americana de “The Ballad of Joe Buck” (sentindo-se, porém, a falta do banjo de Brandon Seabrook), “Respiration” (repescado a “Little Things Run the World”, de 2008) e a atmosfera mais “groovy” de "Green Al" (de “Think Free”), que contou com o melhor desempenho solístico do líder na noite. Não obstante os episódios de interesse, o concerto – em crescendo –, nunca aqueceu verdadeiramente, acabando por se quedar um pouco aquém das expetativas iniciais.
Mário Laginha Trio
A iniciar o segundo dia de concertos, lugar para uma das mais importantes formações portuguesas de jazz, o trio liderado, há quase uma vintena de anos, pelo pianista Mário Laginha.
Ao lado dos cúmplices desta longa jornada – o contrabaixista Bernardo Moreira (garante de segurança) e o baterista Alexandre Frazão, dínamo imparável – Laginha encontra o formato ideal para veicular o lado mais jazzístico do seu pianismo, virtuoso, sim, mas harmónica e melodicamente fresco e inventivo.
Convocando elementos da tradição do jazz, a que acrescenta uma evidente portugalidade (“Fado” foi o exemplo mais evidente), o trio exibiu-se em bom plano, percorrendo peças das quais ressalta clara a empatia telepática que se estabelece entre os três músicos, que apesar de se conhecerem muito bem uns aos outros, não permitem que isso perniciosamente se transforme em previsibilidade ou rotina.
Cultor exímio da melodia, Laginha esteve excelente a desenvolver as linhas serenas de peças como “Tanto Espaço” e a “Balada Op. 23”, de Frédéric Chopin. Notas de relevo são devidas ao “groove” oblíquo de “Tráfico” e ao dinamismo de “Fisicamente”.
Vijay Iyer Trio
Seguiu-se outro dos momentos mais aguardados, o da apresentação do trio de Vijay Iyer. O pianista norte-americano tem-se justamente destacado como um dos mais relevantes compositores e estrategos musicais do jazz do nosso tempo, e também pela forma muito pessoal como trabalha nas fronteiras do idioma, empreendendo frutuosos elos com a música erudita contemporânea, a música do subcontinente indiano e a cultura urbana.
Juntam-se-lhe dois músicos superlativos, merecedores de rasgados encómios enquanto compositores e líderes dos seus próprios projetos: o sólido e inventivo contrabaixista Stephan Crump (quer em pizzicato quer utilizando o arco) e essa tão eficiente quanto subtil (de uma espantosa leveza) máquina rítmica que dá pelo nome de Tyshawn Sorey.
Ao longo da aparição madeirense – em que tocaram não só composições já conhecidas (próprias e alheias) como também apostaram em mostrar material novo – demonstraram a forma consistente e criativa como encaram, sem o subverterem, o paradigma clássico do trio piano-contrabaixo-bateria, partilhando riscos e responsabilidades na construção do som global da formação.
O pianismo multidimensional de Iyer acolhe nos seus interstícios basto espaço para aventuras harmónicas, vívidos jogos melódicos e imprevisíveis processos de ação e reação rítmica. Destacaram-se a notável leitura de “Work”, do seu ídolo, Thelonious Monk, a beleza pungente de “Our Lives”, a intensidade hipnótica de “Hood” (dedicada ao produtor e DJ de Detroit, Robert Hood) e a desconstrução operada em “Human Nature”, tema popularizado por Michael Jackson.
Um excelente concerto – mais um que, cabalmente, rebateu a tese, falsa, de que a música de Iyer é deficitária de emoção –, disputando o título de melhor do festival.
Carlos Bica & Azul
A derradeira noite do Funchal Jazz Festival 2014 iniciou-se com o trio Azul de Carlos Bica, outro dos mais prestigiados jazzistas nacionais, dentro e fora de portas. Trata-se, como é bem sabido e mais uma vez se comprovou, de um verdadeiro trio, na aceção unitária do termo, e não a associação mais ou menos pontual de três músicos, ainda que profundos conhecedores das respetivas características. As três personalidades em presença são capazes, ao mesmo tempo, de manter as suas individualidades e de se fundir naturalmente.
A geometria equilátera da formação é audível, desde logo, na forma como se estabelecem as interações, desencadeadas pelas melodias transparentes tão características de Bica, instigadas pelo “tricot” elétrico de Frank Möbus ou pelo colorido rítmico engendrado, a cada momento, pelo incrível Jim Black.
Percorrendo peças de diferentes momentos da sua carreira – sempre servidas com nuances que as refrescam e por vezes transfiguram – o trio esteve particularmente bem nas interpretações de estandartes de todo um percurso, como “Believer” (com o inconfundível uso do arco) e “2011”, e ainda na energia de “Pastilha Elástica” (de Möbus), resgatando o já longínquo álbum “Twist” (1999), ou na melodia imagética que emana de “Vale”, do mais recente “Things About”.
Ambrose Akinmusire Quintet & Theo Bleckmann
Para encerrar esta edição do festival, estava guardado o concerto que maior expetativa gerara. Sobretudo desde que lançou o seu primeiro disco na Blue Note, “When the Heart Emerges Glistering”, em 2011, o trompetista, compositor e conceptualista Ambrose Akinmusire tem vindo a ascender à primeira linha do jazz global, quer por via do seu notório virtuosismo enquanto instrumentista (que não constitui um fim em si mesmo) quer pela sua visão musical própria e original.
Akinmusire trouxe ao Funchal o seu compacto quinteto, constituído por Walter Smith III (saxofone tenor), Sam Harris (pianos acústico e elétrico), Harish Raghavan (contrabaixo) e Justin Brown (bateria). Mas o principal motivo que aguçava o interesse nesta prestação prendia-se com a presença de um convidado muito especial, o idiossincrático vocalista Theo Bleckmann.
A formação trouxe na bagagem “The Imagined Saviour is Far Easier to Paint”, editado em março deste ano, onde Bleckmann surge como dos vocalistas. Possuidor de um vasto arsenal de recursos técnicos e estéticos, o trompetista demonstrou à evidência a forma como deambula com idêntico à vontade entre sonoridades de diferentes épocas e estilos, explorando timbres, articulações e alianças, em especial com as texturas oníricas produzidas por Bleckmann.
O controlo que este faz dos efeitos que acopla ao seu registo etéreo é de grande rigor, o que se traduz na criação de diferentes atmosferas emocionais. As afinações perfeitas de Akinmusire e Bleckmann permitem que se mesclem na perfeição. Trompetista e pianista protagonizaram em dueto “Nova Scotia” (da autoria de Bleckmann), extraordinário diálogo que constituiu o momento mais arrepiante da noite. Um concerto que fechou o festival a alto nível.
Atividades paralelas
Para além dos concertos principais, diversificadas foram as iniciativas paralelas que tiveram lugar no âmbito do Funchal Jazz.
O concerto de apresentação – a que a jazz.pt não assistiu – aconteceu no Scat, no dia 28 de junho, e ficou a cargo de um quarteto que juntou um dos mais interessantes guitarristas nacionais (Nuno Ferreira), um saxofonista em franco processo ascensional (João Mortágua) e uma secção rítmica madeirense constituída pelo contrabaixista Ricardo Dias e pelo baterista Caio Oliveira, nascido no Brasil mas há muitos anos radicado no Funchal.
O Scat – ótimo espaço, não só em termos das condições propiciadas a quem deseja fruir a música (sejam os que a tocam como os que a escutam), mas também beneficiando de privilegiada localização, com o minúsculo ilhéu do Gorgulho mesmo em frente – acolheu ainda os habituais concertos “after-hours” seguidos de “jam sessions” noite dentro, que estiveram a cargo de um quarteto constituído por nomes emergentes no panorama do jazz nacional, o André Santos/Ricardo Toscano 4teto.
Ao primeiro na guitarra e ao segundo no saxofone alto juntaram-se o excelente João Hasselberg no contrabaixo e João Pereira na bateria. Jovens mas experientes músicos que exibem maturidade e vozes próprias, evidenciando um sólido conhecimento do idioma jazzístico.
O quarteto logrou bons níveis de interação, com natural destaque, no plano solista, para as intervenções de Santos e Toscano, suportadas por uma secção rítmica que não se remeteu à sombra. Quatro valorosos músicos que sentem verdadeiramente a música que tocam, e por isso ela lhes sai tão orgânica e natural. Após tocarem algumas peças do disco de estreia do guitarrista gravado por esta mesma formação (escutaram-se “Ponto de Partida”, “Presságio”, “Avô João”, “Qwerty”) abriram as “jam sessions”.
Na primeira noite contribuíram Jeremy Pelt e Rudy Royston que, diga-se, aqueceram as hostes, revelando-se mais enquadrados aqui do que no concerto principal. Vijay Iyer, Stephan Crump e Jim Black não deixaram de na noite seguinte (memorável) se juntarem a esta histórica prática de resultados sempre imprevisíveis.
Na última sessão foi quase todo o quinteto de Akinmusire que fez a festa. Não esquecendo os vários músicos locais que, nas três madrugadas, subiram também ao palco do Scat. As “jam sessions” serviram de mote para o trabalho – em tempo real e ao longo de cada noite – do artista plástico Fagundes Vasconcelos.
A vertente formativa dos jovens da região também foi (e bem) contemplada pela organização do festival. No dia 5 de julho decorreram cinco “masterclasses” – ministradas por Mário Laginha, Bernardo Moreira, Alexandre Frazão, Ricardo Toscano e André Santos, sob a coordenação de Jorge Borges, diretor pedagógico do festival – destinados aos alunos do Conservatório - Escola Profissional das Artes da Madeira (CEPAM). Uma iniciativa de saudar e que contribuiu, certamente, para enriquecer o quadro mental e artístico dos jovens músicos presentes.
Entre os dias 1 e 5 de julho, ao final da tarde, apresentaram-se na placa central da Avenida Arriaga, mesmo em frente ao teatro funchalense, diferentes “combos” do curso de jazz do CEPAM. Uma demonstração do importante e continuado trabalho de formação na área do jazz que tem vindo a ser desenvolvido na ilha.
Também por estes dias esteve patente no átrio do Teatro Municipal Baltazar Dias a exposição “Misty”, com obras do fotógrafo Renato Nunes, outro antigo colaborador da jazz.pt, atualmente a residir em Londres, que assina as imagens que tão bem ilustram esta reportagem. Através das perspetivas e dos ângulos mais inusitados, dos detalhes e das expressões, Nunes capta o que não faz vibrar as moléculas do ar mas é essencial: a intensidade emocional do ato de criar.
Especialmente impactante a foto de Bernardo Sassetti, ao piano, de pé, em íntima comunhão com o seu instrumento. Nunes ministrou ainda o “workshop” de fotografia “Ao Vivo”, na tarde de 2 de julho, na Escola Profissional Cristóvão Colombo.
O cinema com jazz também não foi esquecido pelos organizadores do festival. No Scat foram projectados dois filmes bem conhecidos dos jazzófilos: no dia 2 de julho, “Bird” (1988), de Clint Eastwood, com Forest Whitaker no papel de Charlie Parker e banda sonora de Lennie Niehaus; no dia seguinte, “Round Midnight” (1986), de Bertrand Tavernier, protagonizado por Dexter Gordon, que encarnou o fictício saxofonista Dale Turner. Herbie Hancock escreveu a banda sonora.
Polémicas à parte, não restam dúvidas de que o Funchal Jazz iniciou um novo capítulo, mais alinhado com o jazz artisticamente relevante do nosso tempo, que se espera tenha continuidade nos anos vindouros.