Out.Fest
Avalanche de sons
Naquele que foi, talvez, o seu melhor cartaz de sempre, o Festival de Música Exploratória do Barreiro levou à margem Sul do Tejo diversos entendimentos do que é, hoje, a experimentação, do jazz e do rock à electrónica, quase sempre com a improvisação como método. Foi uma festa.
O Out.Fest - Festival Internacional de Música Exploratória do Barreiro tem levado ao Barreiro, desde 2004, muita música experimental, atravessando diversas vertentes estéticas – do rock ao jazz, passando pela electrónica e pela música improvisada. Esta edição de 2014 terá tido, talvez, a programação mais ambiciosa até ao momento, combinando nomes emergentes com outros históricos, apresentados em diversos espaços da cidade, além de promover um “workshop” e uma “masterclass”.
Norberto Lobo + Peter Brötzmann & Steve Noble
O festival arrancou com a actuação de Norberto Lobo no Be Jazz Café. O guitarrista levou ao festival uma das apresentações mais exploratórias que já lhe (ou)vimos. Afastado dos habituais rendilhados, optou por um dedilhar desbragado que, apesar da proximidade com a folk americana, seguiu um caminho de pesquisa que acabaria por desembocar em melodias arrendondadas. Usando uma guitarra acústica, Norberto mostrou um som mais sujo, chegando a usar o corpo do instrumento como percussão. Serviu-se também de amplificação (caseira) e pedais de efeitos para fazer a guitarra soar como se fosse eléctrica.
Na primeira noite de Out.Fest seguiu-se a actuação da dupla Peter Brötzmann & Steve Noble. O saxofone tenor de Brötzmann mostrou a habitual ferocidade (apesar da idade do músico, 73 anos!), e desde logo com um arranque infernal. Na bateria, Noble correspondeu com uma postura ao mesmo nível, fornecendo lenha a toda a intensidade. Ao segundo tema Brotzmann amansou, passando para o clarinete, mas logo de seguida regressaria com toda a energia.
O palhetista tocou ainda um tema no tarogato (instrumento raro, mas que já é uma das suas imagens de marca), sendo acompanhado por um óptimo solo de Noble, que nesse momento evocou o ritmo de uma marcha militar – o baterista convenceu totalmente o público, marcando um claro equilíbrio com o velho soprador. Para fechar, o veterano alemão incluiu uma emotiva interpretação do clássico “Lonely Woman”, numa óbvia homenagem a Ornette – uma primeira metade no sax alto, a segunda parte no tenor.
Peter Evans Quintet + Fennesz + Dean Blunt
A Casa da Cultura acolheu a estreia nacional do Peter Evans Quintet, o grupo que editou o genial “Ghosts” - um dos mais consensuais discos de jazz criativo deste século. Foi um dia em cheio: na parte da tarde Peter Evans dera uma “masterclass” na Escola de Jazz do Barreiro e à noite o trompetista apresentou a música do seu quinteto. No palco, Evans mostrou toda a sua qualidade como instrumentista, com uma fabulosa inventividade e um incrível domínio instrumental – primeiro no trompete piccolo e depois no tradicional.
Um dos grandes trunfos do quinteto é Sam Pluta, nos processamentos electrónicos em tempo real, que neste concerto esteve inexcedível – foi magnífica, a sua articulação com os outros músicos e especialmente a “tratar” um solo do trompete de Peter Evans. Tom Blancarte, no contrabaixo (em pizzicato, com arco e ainda com baqueta de bateria), cumpriu com distinção e originalidade.
Ron Stabinsky, ao piano, foi uma peça-chave: aparentemente discreto, esteve sempre presente e foi inteligente em cada intervenção, confirmando-se como uma das mais-valias do grupo. Na bateria esteve Jim Black, bem conhecido do público nacional (membro do trio Azul de Carlos Bica), que roubava constantemente as atenções . As suas intervenções foram também pertinentes para levar a formação a seguir por outros caminhos. Fabulosa actuação de um grupo que, em articulação perfeita, representa o pico do jazz vivo do século XXI.
Em absoluto contraste com a expansividade do quinteto de Evans, seguiu-se a tranquilidade de Christian Fennesz, entre o “drone” e a contenção (a título de curiosidade, refira-se que o austríaco passou pelo Jazz em Agosto em 2004, integrado na Regenorchester XI do seu compatriota Franz Hautzinger). O segundo dia de concertos do Out.Fest fechou com o fenomenal espectáculo cénico de Dean Blunt, embalado por uma música electrónica profundamente narcótica.
Carla Bozulich + Open Mind Ensemble + Rodrigo Amado Wire Quartet + Putas Bêbadas + Magik Markers + Faust + The Ex
Carla Bozulich apresentou o resultado do seu “workshop” num concerto no Teatro Municipal do Barreiro, pelas 16h00 de sábado. Entre os participantes estavam músicos como Maria Radich (voz), Bernardo Álvares (contrabaixo) e Pedro Saraiva (guitarra), entre outros.
A partir das 17h00 o Be Jazz Café acolheu duas formações nacionais que exploram a improvisação a partir de conceitos diferentes. Infelizmente, não pude assistir a estes dois concertos, mas Bernardo Álvares, colaborador da jazz.pt, teve oportunidade de as testemunhar. O Open Mind Ensemble reuniu Francisco Andrade, Albert Cirera e José Bruno Parrinha (saxofones), Luís Vicente (trompete), Paulo Pimentel (piano), Miguel Mira (violoncelo), Marco Franco (bateria, no lugar habitualmente ocupado por João Lencastre), sob a direcção de Luís Bragança Gil. Segundo Álvares, assistiu-se a «uma improvisação dirigida sem grande espaço para desvios, mas com Cirera a destacar-se com grande à-vontade».
O Wire Quartet do saxofonista Rodrigo Amado, com Manuel Mota na guitarra, Hernâni Faustino no contrabaixo e Gabriel Ferrandini na bateria, aproveitou para apresentar ao vivo o seu recente disco (edição Clean Feed) e terá deixado um evidente entusiasmo no público presente no Be Jazz Café. Refere Álvares: «Entre o calor humano do pequeno clube de jazz sobrelotado e o fogo da música quase não se respirava.» A actuação foi considerada por alguns como «um dos favoritos do festival» e houve gente que se lhe referiu mesmo como o «concerto do ano»!
Na noite de sábado, já no Pavilhão do Grupo Desportivo Ferroviários, os portugueses Putas Bêbadas, da Cafetra, mostraram o seu rock juvenil e que abusa de distorção. Já os Magik Markers, liderados pela carismática Elisa Ambrogio, deram uma lição de rock bem traçado. Seguiu-se a actuação dos lendários Faust… Contando com apenas dois membros da formação original - Jean-Hervé Perron e Werner "Zappi" Diermaier –, a “performance” da banda foi compensada com a inclusão de Carla Buzolich (guitarra e voz) e de dois músicos barreirenses: Francisco Andrade (saxofone tenor, também do Open Mind Ensemble) e Ernesto Silva (guitarra). A actuação incluiu ainda três tricotadeiras (!), um pintor (!!) e uma betoneira (!!!).
Este concerto valeu, sobretudo, por mostrar como o grupo consegue manter uma energia vital, décadas após a emergência, sabendo articular a estranheza dos sons industriais com uma fluência improvisacional e uma constante irreverência rock. Ouviu-se uma revisão de “The Sad Skinhead”, do clássico “Faust IV” – um dos grandes marcos do krautrock e mesmo da música do século XX. Em destaque esteve o fervilhante saxofonista do Barreiro, Francisco Andrade, que se mostrou em grande nível – até em duo com a betoneira!
Também históricos, os The Ex fecharam a noite entre o punk rock e a improvisação, apresentando, na sua maior parte, temas recentes. Só faltou terem trazido o saxofonista etíope Getatchew Mekuria (com quem já gravaram).
O festival encerraria no domingo, dia 5 de Outubro, com as actuações de Charles Cohen e Rabih Beaini no Convento da Madre de Deus da Verderena.