100 Ra
Manhã, tarde e noite
O centenário do nascimento de Sun Ra foi comemorado no passado dia 18 de Novembro num Teatro Maria Matos também a celebrar um aniversário, o seu 45º. O espaço estava engalanado para a festa saturniana e esta aconteceu mesmo.
Para comemorar o seu 45º aniversário, o Teatro Maria Matos decidiu homenagear Sun Ra, que faria 100 anos este ano. E terá sido impossível não reparar que se estava em festa, pois todo o teatro estava decorado com a exuberância que caracterizava esta lenda do jazz.
Os músicos convidados a preparar espetáculos especiais para comemorar esta ocasião e dar vida à música de Sun Ra foram Nuno Rebelo, Bruno Pernadas e Gala Drop. Entre os concertos, Mo Junkie brindou o MM Café com uma actuação “saturniana”.
A proposta que Nuno Rebelo levou ao Maria Matos poderá explicar o facto de a composição da audiência ter sido maioritariamente formada por famílias com crianças: O músico radicado em Barcelona apresentou-se acompanhado por uma orquestra composta quase exclusivamente por jovens alunos do Conservatório Calouste Gulbenkian de Braga. Entre secção rítmica, sopros, cordas e coro, chegaram a estar mais de 30 músicos em palco, todos mascarados sob o mote que marcou o dia. Para além de tocar baixo, Rebelo lançou projecções vídeo de Sun Ra, sobre as quais a orquestra tocava os seus temas numa por vezes difícil e complexa sincronia.
A postura em palco da violinista solo e do percussionista destacou-se, sobrepondo as suas energias à falta de à-vontade e de compromisso que se poderia sentir de uma forma geral. Apesar da qualidade dos temas e da competência técnica do grupo, o cunho curricular talvez tenha sido o maior pecado desta actuação, desvirtuando o espírito da Arkestra de Ra.
Nem por isso a performance idealizada por Rebelo deixou de surpreender. Exemplo disso foi o final surpreendente, em que os músicos saíram do palco e pediram a toda a assistência para os seguir para fora do teatro enquanto cantavam e tocavam.
O segundo concerto esteve sob a responsabilidade de Bruno Pernadas, que mostrou uma vertente de Sun Ra como fazedor de temas “standard”. O guitarrista que tanto se movimenta nos mundos do jazz como no chamado indie-rock apresentou um 10teto + 2 que, para além de si, contava com muitos nomes da “nova geração” do jazz em Portugal, como Pedro Pinto no contrabaixo, Daniel Bernardes no piano e no órgão Hammond, Paulo Santo no vibrafone, João Rijo e Joel Silva nas baterias e percussões, João Mortágua, Desidério Lázaro e Francisco Andrade nos saxofones (respectivamente: alto, tenor e soprano, tenor e barítono), Tomás Pimentel no trompete e no fliscórnio e Afonso Cabral e Margarida Campelo a darem as suas vozes a alguns temas.
O som que se ouviu, embora datado (ou não estivéssemos a falar de composições com largas dezenas de anos), faz falta hoje em dia. Há muito de intemporal nesta quase religiosidade das gravações históricas de editoras como a Impulse ou a Saturn de Sun Ra que foram evocadas para este concerto. Ra e a sua Arkestra de “piolhosos” tomaram um longo banho quente e saíram perfumados directamente para o Teatro Maria Matos.
Houve mais do que um momento de improvisação conjunta dos sopros em cacofonia, sendo a parte em que os três saxofonistas tocaram juntos, sem secção rítmica, um dos momentos mais marcantes do dia. Algo que também ficará para a memória foi o feroz solo de João Mortágua. Num concerto apinhado de solos, este jovem saxofonista conseguiu impor-se com todo o mérito, encarnando um Sonny Rollins em “speeds”.
Mas nem só de solistas se fez o concerto. A secção rítmica esteve sempre incansável no preenchimento dos tempos fracos, a manter o interesse, embora a opção pela segunda bateria parecesse não acrescentar muito. Quando um dos homens das baquetas se servia do “set” de percussão, a música ganhava outro brilho.
Esta já não é a próxima geração do jazz: o seu tempo chegou, está aqui. Sinal disso é a atitude de “jazz cat” histórico em palco de Daniel Bernardes, descontraidamente a mascar pastilha e com uma corrente a segurar os seus óculos de ver, qual Henry Grimes que sobe sempre ao palco com um fio para pôr o telemóvel ao pescoço, de publicidade a um banco qualquer.
Se Nuno Rebelo foi a manhã e Bruno Pernadas a tarde, os Gala Drop foram a noite. A formação desta banda mudou, com Maria Reis (guitarra) a substituir Guilherme Gonçalves e assim a juntar-se a Nelson Gomes (sintetizadores), Afonso Simões (bateria), Jerry The Cat (voz e percussão) e Rui Dâmaso (baixo e electrónica).
O som profundo de Gala Drop agarrou as atenções desde o primeiro minuto. Com uma carga tanto urbana como selvagem, foram orquestrando electricidade e batuque com grande tensão e riqueza tímbrica. Foi a vez de se ouvir o lado cru e despido de Sun Ra.
Gomes e Simões sentem-se particularmente confortáveis neste registo e Jerry The Cat, que normalmente já carrega o seu quê de Ra, profetizou no seu tom próprio de “spoken word” inundado de soul. Maria Reis a ferir a guitarra e Rui Dâmaso a conquistar os graves trouxeram o “groove”. E celebrou-se.