Seixal Jazz
Alma cheia e gosto acre
O Craig Taborn Trio sobressaiu em mais uma edição do festival programado por Paulo Gil e Pedro Costa na margem Sul do rio que banha Lisboa. Vai directamente para os melhores do ano. Já Louis Sclavis deixou mau sabor…
Entre o Verão e o Natal, o Seixal Jazz tem-se afirmado nos últimos 15 anos como uma proposta incontornável, agora com uma programação bicéfala que apresenta vantagens. A sua matriz inicial, a de apresentar grandes nomes da cena jazzística nacional e internacional, mantém-se e, em dois fins-de-semana de Outubro com cinco concertos, Paulo Gil e Pedro Costa dividem a programação com um resultado curioso.
Juntam-se num só evento dois tipos de público que habitualmente se separam, contribuindo para acabar com ideias labregas. O Seixal Jazz continua tranquilamente o seu trabalho de afirmação como um grande festival.
Uma noite incrível
No dia um do evento fomos surpreendidos com um concerto espantoso, que entra directamente para a lista dos melhores deste ano. Mas ainda antes de falar na música, cabe referir dois aspectos que poderiam ser melhorados de futuro. O primeiro diz respeito à lentíssima bilheteira, que fez atrasar o concerto com o seu ritmo em câmara lenta. O segundo: já com toda a gente sentada pelo simpático assistente de sala e os músicos em acção, os sons mais audíveis eram os pi-pi-pi das lentes a focar e os tchlacks dos obturadores. Uma saraivada imensa de disparos de todos os fotógrafos presentes cortou os silêncios que os músicos tentavam instalar.
Quando a fúria fotográfica abrandou e/ou quando a bateria e o contrabaixo se tornaram mais activos, ficámos só com a música e com uma noite incrível, embora já se tivessem perdido uns bons 10 minutos de jazz, substituído pelo techno das máquinas fotográficas.
Depois, três músicos notáveis mudaram a nossa ideia de como soa um trio de piano, contrabaixo e bateria. O jazz sempre foi uma música que absorveu e destilou várias outras músicas e por isso não surpreendeu o facto de encontrarmos Terry Riley e boogie-woogie nas composições de Craig Taborn. O que encantou, sim, foi a genialidade com que foram integradas.
Composições inteligentes e formas de improvisar inovadoras marcaram a noite e a excitação de seguir uma música inquietante. A bateria de JT Bates assumiu quase sempre um papel melódico, entrando num diálogo áspero com o líder. O contrabaixo de Thomas Morgen foi mais rítmico do que seria de esperar. O piano de Taborn improvisou com repetições e momentos obsessivos. Pequenos pedaços melódicos uniam por vezes os músicos, para logo estes seguirem caminhos separados deixando uma sensação wagneriana: queríamos ouvir mais daquelas melodias lindíssimas. Grande concerto, dos que enchem a alma!
Melodias simples
No segundo dia fomos ouvir o coeso e eloquente trio de Mário Laginha, formado por músicos de altíssima qualidade. É gratificante perceber que o nome do pianista português atrai gente de vários locais, dispostas a ir até ao Seixal para o ouvir. Interessante foi verificar, igualmente, o entusiasmo que a sua música gera: melodias simples e populares tocadas com enorme competência pelos três músicos, Bernardo Moreira e Alexandre Frazão para além de Laginha.
Esta música tem, no entanto, um problema: para quem já ouviu o grupo algumas vezes, o resultado é bem menos estimulante, pois os temas são demasiado evidentes e a sua previsível desconstrução não consegue anular o bocejo. Se é impossível não elogiar o trabalho do trio, a vontade existente de oferecer um projecto abrangente e de acesso fácil tem as suas condicionantes.
Ponto de interrogação
A segunda semana do Seixal Jazz começou com outro grande nome do circuito internacional: o francês Louis Sclavis com o seu novo Atlas Trio. O grupo é fronteado pelo som nítido e perfeito do clarinete baixo, que flutua sobre uma base de teclados vários e guitarra eléctrica. Aguardado com expectativa - pois a carreira flexível do clarinetista está cheia de surpresas –, a noite acabou por deixar um gosto acre.
Também aqui o concerto começou antes da música, pois a roupa e o cabelo dos músicos que subiram ao palco causou o primeiro sobressalto, batendo recordes de mau gosto só ultrapassáveis nos programas televisivos da manhã que percorrem as romarias do País. Assim, o contraste foi ainda maior, pois de onde não era crível poder-se ouvir mais do que hardcore pimba, veio uma música interessante, com destaque para a qualidade de Benjamin Moussay: técnica enorme e uma excelente capacidade de fazer sons interessantes.
Depois deste início estimulante em que ecoou vagamente uma ideia francófona de rock progressivo (Heldon, Magma), surgiram melodias folk que instalaram uma sensação desagradável de “remake”, seguidas de temas ainda mais absurdos que soavam a genérico de uma série tipo CSI, mas feita em França. Deixámos o intervalo intervalar, na esperança de que o bom senso regressasse, mas vieram mais temas em forma de ponto de interrogação, com frases barrocas mal resolvidas, tocadas em uníssonos para que percebêssemos que não eram “ao calhas”, e solos...
Foi um concerto fraco de um grupo tecnicamente fortíssimo e muito unido, coordenado por um músico que toca fabulosamente (um solo de Sclavis no final da primeira parte, em que Bechet se cruzou com Brotzmann, foi especial), mas cuja massa cinzenta parece estar neste momento sobre a forte influência do mau corte de cabelo que a recobre.
O festival continuou com mais duas sessões, o dos Lokomotiv de Carlos Barretto (desta feita com Ricardo Toscano como convidado especial) e o do quinteto do jovem trompetista Ambrose Akinmusire. A jazz.pt não pôde estar presente, mas tiveram ambos outros concertos recentes em Portugal, um em Lisboa, na Culturgest (http://www.jazz.pt/report/2014/09/21/locomotiva-em-andamento-prometer-mais-voltagem/), e o outro na Madeira, no Funchal Jazz (http://www.jazz.pt/report/2014/07/08/jazz-no-eden/).