Wayne Shorter Quartet
O eterno fascínio de Mr. Weird
O saxofonista que já pertenceu aos Weather Report voltou a Portugal para se apresentar com o seu habitual quarteto no Centro Cultural de Belém. Criativamente bem vivo e superlativamente acompanhado, o mestre deu a 29 de Outubro um belo concerto que perdurará na memória.
Este parece ser o ano dos octogenários. Depois de Martial Solal e Barry Harris nos terem oferecido concertos memoráveis, foi agora a vez de Wayne Shorter, que regressou a Portugal depois de se ter apresentado na Casa da Música, no Porto, em junho último.
Numa noite quase estival à beira-Tejo, o Grande Auditório do Centro Cultural de Belém recebeu (longe de estar cheio) uma das mais relevantes figuras do jazz do último meio século. Primeiro como integrante das formações mais célebres de Art Blakey e Miles Davis, sobretudo no segundo quinquénio da década de sessenta, ao mesmo tempo que se emancipava como líder de pleno direito na Blue Note, e, mais tarde, como principal força motriz dos fusionistas Weather Report.
Shorter deixou claro que, apesar do estatuto que o seu percurso lhe confere, quer, em vez de replicar processos e fórmulas, reinventar-se e demandar caminhos menos expetáveis. É certo que a idade mostra os seus efeitos, mas o saxofonista norte-americano não é, decididamente, alguém que goste de repousar à sombra dos louros alcançados. Não será hoje o intenso saxofonista de outrora, mas mantém intacta a assertividade e a refinação das suas intervenções.
Consigo vieram os três músicos que o acompanham regularmente desde 2000 e que já são a sua banda mais longeva: o pianista Danilo Pérez, o contrabaixista John Patitucci e o baterista Brian Blade. Os quatro – cada um por si forças criativas de méritos mais do que reconhecidos – coalescem numa entidade sólida e coesa (a disposição próxima dos instrumentos em palco atesta-o), exímia no jogo de dinâmicas, sobretudo nos exercícios de contenção a quatro.
Articulando exemplarmente as estruturas pré-estabelecidas com as margens de manobra individuais, beneficiam de uma abordagem cúmplice desenvolvida ao longo dos anos, balanceando a sensibilidade e a complexidade tão características do universo sónico do saxofonista. O seu som, como o de poucos, equilibra cérebro e coração, rigor e emoção.
Premissas expandidas
O quarteto é perito em desafiar operações aritméticas, com a soma a revelar-se sempre muito superior à junção das parcelas. Com as suas abordagens e ferramentas, o quarteto expande as premissas de liberdade estabelecidas pelo segundo quinteto de Miles, sem que a música escutada deixe, ao mesmo tempo, de ser imaginativa e acessível.
O veterano exibiu a sua multifacetada musicalidade, desdobrando-se diria que equitativamente entre os saxofones tenor e soprano, preferindo-o pessoalmente neste último, por evidenciar aquele lirismo irregular e melodicamente inquieto.
A música fluiu como um grande rio, alternando zonas de maior turbulência com outras onde a água segue tranquilamente o seu curso, ainda que não isento de fundões e correntes alterosas. Shorter – mais interventivo do que em outras ocasiões – sabe o momento exato em que se junta aos outros três músicos, que entretanto já urdiram a necessária teia (afinal, têm-na). O saxofonista paira então a diferentes velocidades com impressionante elegância, que só numa leitura enviesada pode ser confundida com previsibilidade ou rotina.
No plano individual, Danilo Pérez esteve sempre muito (por vezes demasiado, até) presente, fornecendo o suporte harmónico fundacional para o desenvolvimento dos temas. O pianista revelou a sua mestria a tocar acordes cavos com a mão esquerda, e desenvolver os motivos melódicos com a direita, com uma eficácia sóbria.
Patitucci esteve ótimo no seu papel de pedra angular, com a sua habitual sonoridade encorpada, expressa sobretudo na utilização do arco, a que recorreu em diversos momentos para acrescentar uma aveludada densidade. Brian Blade é o elemento que acaba por incutir maior tensão no som do quarteto, e fá-lo através de propositadas acentuações (sobretudo através de rufos vulcânicos) e de texturas e padrões expressivos e em constante mutação.
Sempre sentado num posto meticulosamente arrumado, Shorter dirigiu-se uma vez ao público (com um lacónico «hi there!»), e não apresentou as peças tocadas, embora tenham sido vários os momentos familiares, que logo se metamorfoseavam, por diluição ou acreção. O público saiu satisfeito após dois “encores”.
Quando não intervém diretamente no que se escuta, Mr. Weird queda-se, acredito, em introspeção. Prepara-se, a cada instante, para fazer do jazz o que quiser. Missão cumprida.