Guimarães Jazz
Um festival contagiante
E lá passou o festival de jazz de Guimarães de 2014. Agora só nos resta que o tempo passe depressa para voltarmos à cidade onde Portugal nasceu. Lembrando-nos do que agora fizeram Uri Caine, Adam Lane, a Trondheim Jazz Orchestra com Joshua Redman (foto acima) e um Lee Konitz mais jovem que os seus jovens acompanhantes…
Ir a Guimarães para ver o seu festival de jazz tem um lado cruel: fico sempre com vontade de lá ficar a viver. É uma das melhores cidades do País, com uma escala extraordinária e um arranjo muito civilizado. E tem o festival que repara o espírito e dá jazz de altíssimo nível.
O racionamento de bens de primeira necessidade imposto pelo Governo à população, para que possa manter a tripa-forra dos banqueiros, só me permitiu assistir à segunda semana de concertos e verificar que, como bem diz o programador Ivo Martins no texto de apresentação, o Guimarães Jazz mantem-se «agregador e estável», o que também mostra que o poder local é muito mais consciente em relação àquilo que é importante para a vida das pessoas enquanto o central se mantém focado em garantir a boa-vida das pessoas Espírito Santo, Dias Loureiro, Oliveira e Costa, Duarte Lima, Cadilhe e respectivas declinações.
Cheguei a Guimarães depois de tocados os trios de James Carter e de Adrián Oropeza, o quarteto do David Murray, o quinteto de Theo Blackmann, o sexteto de Susana Santos Silva/Porta Jazz e a Big Band da ESMAE. Fui ouvir nesse primeiro dia a trombonista israelita Reut Regev, com Taylor Ho Bynum no trompete, Adam Lane no contrabaixo e Igal Foni na bateria.
Fundo na alma
O quarteto funciona preso a dois polos: por um lado o enorme “groove” de “Damm” Lane – capaz de disparar linhas “funky” com a facilidade de quem respira - e por outro as ideias dos restantes músicos. Fazendo justiça ao carácter do festival, o grupo procurou apresentar temas bem estruturados e as quatro primeiras músicas, escritas por Bynum, Foni e Regev, padeciam de um mal comum: frias, agradáveis de ouvir, mas sem fantasia.
As composições são feitas de vários pedaços musicais desconexos, que se vão encaixando num corpo estranho, como um móbil composto de partes de diferentes naturezas. Lane joga noutro campo, com música muito mais sólida e interessante e quando o concerto parecia evoluir fleumático, tudo mudou na quinta música, com o arranjo de “Sanctum” de Lane: música maravilhosa, que nasceu de um solo no contrabaixo e evoluiu para uma melodia wagneriana que toca mais fundo na alma que muito livro sagrado.
Bynum e Regev são excelentes solistas e o grupo esteve intenso e espiritual na execução. Foi um bom concerto, encerrado por um “encore” em que os músicos descarregaram a energia que uma boa performance normalmente produz, de forma um pouco atabalhoada e tosca que poderia ter sido evitada. Os quatro músicos coordenaram ainda a residência artística deste ano, inspirando uma série de jovens, e asseguraram as “jam sessions” do Café Concerto.
Com requinte
No dia seguinte, quinta-feira, foi a vez do trio de Uri Caine, com Clarence Penn na bateria e Mark Helias no contrabaixo. O pianista vinha sem as suas companhias mais regulares em disco, mas depois de os ouvir tocar fiquei com a ideia de que é um grupo que está junto desde sempre. Foi um concerto superior, com música feliz, feita com excepcional mestria e tocada com um nível só acessível a muito poucos na terra.
Mantendo a espontaneidade e a liberdade de quem cria música no momento em que a toca, era simultaneamente detalhada e cheia de singularidades, com o requinte da música barroca. Penn esteve incrível na bateria, com ideias novas para cada tema. Coisas pequenas, simples, de enorme musicalidade. Helias é um improvisador inteligente com técnica infinita e capacidade de a usar bem, desmultiplicando a estrutura harmónica dos temas em múltiplas perspectivas.
Caine encheu o grupo com energia (que sem ele a liderar poderia perfeitamente soar esvaído, sem carga e monótono de tão contido) e deu-lhe profundidade ao estilhaçar os temas desde os primeiros acordes, liderando o processo de reconstrução. A forma como monta as peças é única, fazendo a música flutuar, sem que lhe consigamos perceber a estrutura, para depois a fazer descer à terra através da improvisação.
Nove composições intervaladas com um “Round Mignight” muito surpreendente (sim, ainda é possível fazê-lo!) e o “Without a Song” de Jerome Kern para “encore” criaram uma noite de grande música em Guimarães. Um concerto inspirador, feliz e raro. «Tudo foi pasmo», mas um assombro intelectual com génio.
Velho jovem e jovens velhos
Lee Konitz era um dos grandes acontecimentos anunciados desta edição de um festival que se tem preocupado em trazer sempre nomes históricos, construindo pontes com um passado vivo, que é por isso mesmo presente. A história não toca e por isso fomos cautelosos, escaldados com desilusões anteriores. O quarteto juntava Konitz, com 87 anos, a três músicos da nova geração. Também este não é um facto novo, porque o saxofonista prefere não ser visto como um “nome”, preocupando-se em criar música em contextos novos, envolvendo-se com as correntes do jazz dos seus tempos, mesmo com os movimentos mais disruptivos.
Assim, o grande senão da noite não foi Konitz. Este ainda é capaz de pegar em qualquer melodia e desmontá-la em variações belíssimas: tocou bem, já com algumas limitações, alternando o saxofone com a voz (quando não conseguia soprar – ou não queria – cantarolava as improvisações), ficando claro que continua cheio de música e capaz de pegar em qualquer tema e fazê-lo brilhar pela improvisação. A banda que trouxe é que não tinha a sua idade – era mais “velha” – em energia e abertura musical. Demasiado fracos, os bem mais jovens (em idade apenas) músicos tocaram ao ralenti e soaram mofentos.
Mesmo percebendo que seria contraproducente introduzir muita carga na música – não é o estilo de Konitz e ele não os conseguiria acompanhar –, era assim mesmo escusado assumir-se como papel de parede. A bateria e o contrabaixo tinham muita pouca capacidade de diálogo e também pouca pormenorização, um ingrediente importante para a música do saxofonista. Só o piano conseguiu dialogar e demorou algum tempo a fazê-lo. No final conseguimos apreciar a música brilhante, hoje em dia muito mais plácida, do saxofonista e algum diálogo com Dan Tepfer.
Música prospectiva
O concerto que encerrou o festival guardava-nos uma enorme surpresa. Nos anos anteriores estas orquestras de rádio nórdicas têm sido capazes de tocar música de qualidade, mas pouco inovadora e com um espaço fechado para os solistas. Este ano a história foi outra. A orquestra também era nórdica (norueguesa), também era da rádio (Trondheim) e também trazia um grande solista convidado (Joshua Redman). Mas o grupo está cheio de música nova e interessante e o papel do maestro e director artístico não se limita ao de arranjador: a Trondheim Jazz Orchestra é liderada por um músico que vem das correntes mais actuais do jazz europeu, o saxofonista Eirik Hegdal (que bem conhecemos dos Angles, editados pela Clean Feed).
Por isso a música não é retrospectiva e sim prospectiva na procura de novos caminhos para um grupo alargado de músicos, onde a disciplina e a definição de papéis é muito importante, mas onde também há espaço para a liberdade individual e arranjos que exploram verdadeiramente as possibilidades tímbricas de juntar instrumentos tão díspares como um banjo e uma flauta piccolo. A própria orquestra integra músicos e não apenas executantes com uma escola jazzística aberta e desempoeirada, como o contrabaixista Ole Morten Vågan, que toca regularmente com Jonas Kullhammar e Paal Nilssen-Love.
Hegdal é muito interessante, com uma escrita cubista, cheia de ângulos diferentes e uma distribuição pelos instrumentos verdadeiramente interessada nos sons. Grande música, que atravessa fronteiras classificativas e que encheu o auditório do Vila Flor com agrado (grande parte do público a aplaudir de pé no fnal). E por cima da grande música e dos grandes sons de Hegdal estava o saxofone de Redman, que é dos melhores sons no instrumento da actualidade. Dois incríveis solos do norte-americano marcaram a noite, durante a qual ainda se ouviu o trombone, o trompete e o violino a solar com interesse e Morten Vågan a contrabaixar de forma notável.
A orquestra tem um som novo, descontraído e simultaneamente rigoroso, alegre e brilhante. É um exemplo do que pode ser uma boa “big band” no século XXI. Foi a melhor maneira de fechar um excelente festival cuja programação tem sido admirável em conseguir encher diariamente o auditório de 600 lugares com grande música, independentemente das classificações, e que atrai – é notório –, para além dos vimaranenses, pessoas de vários pontos do País e de Espanha. O Guimarães Jazz deveria ser um caso de estudo e um exemplo a seguir.
Tudo chama a Guimarães
Paralelamente ao Guimarães Jazz a oferta cultural da cidade é imensa e de grande qualidade: o novo centro de exposições impressionou com a colecção de máscaras africanas de José de Guimarães e uma mostra de movimentos arquitectónicos da escola de arquitectura do Porto (extremamente interessantes os do período do pós-25 de Abril, opostos aos de Siza e Souto Moura –“Lado B”), o museu e biblioteca da Sociedade Martins Sarmento, a exposição de fotografia no próprio centro cultural.
A cidade é de uma beleza só comparável a Évora, com uma escala humana e um cuidado arquitectónico exemplar. E há ainda a boa comida, o churrasquinho da Cervejaria Martins e os castelinhos da Pastelaria Gil Vicente. Também a boa cama do Hotel Fundador, a simpatia dos vimaranenses e a incrível organização do festival (que dá cartas a qualquer engenheiro de produção alemão). Tudo chama a Guimarães e nos faz sair de cá com vontade que o ano passe depressa, para podermos voltar.
Mas o Guimarães Jazz não é só concertos. Começa por contagiar a cidade com a sua marca, contribuindo para uma melhor imagem global. Como já foi dito, tem acções de formação para jovens músicos com a banda residente (as oficinas de jazz), produz animações musicais em vários locais da cidade, integra o ciclo de Histórias do Jazz, uma iniciativa extremamente importante de António Corvelo e Manuel Jorge Veloso (a nossa civilização assenta num livro de história, como bem lembrou Marc Bloch, e nós tendemos a esquecer este elemento estrutural para construir o futuro), apoia a edição (depois de anos a apoiar edições repetitivas da TOAP, o festival – finalmente – mudou de rumo) e promove as “jam sessions” que se iniciam pouco depois do fim dos concertos, no bar por baixo do auditório.
Além disto, a organização do Guimarães jazz é a melhor equipa de produção do País, impedindo o uso da designação “máquina de produção” pelo seu lado humano e afectuoso. Nada falha, ano após ano. Corre tudo sempre muito bem, incluindo a música.