Platform
Improvisação plataformística
O grupo de Xavier Charles, Katrine Schiott, Jonas Cambien e Jan Martin Gismervik foi à Parede mostrar como entende a improvisação na perspectiva de uma tendência anarquista a que se chama plataformismo. E conseguiu que a música fosse melhor do que o próprio conceito acusado de “leninista” pelos demais anarcas…
Poucas vezes o nome de um projecto se aplica tão bem à música que apresenta. O quarteto trans-europeu (França, Bélgica e Noruega) formado pelo veterano Xavier Charles (clarinete, foto acima por Hazam Modoff) com a violoncelista Katrine Schiott, o pianista Jonas Cambien e o baterista Jan Martin Gismervik tem como nome Platform, em alusão a uma tendência do anarquismo, o “plataformismo”, que defende a organização permanente das lutas, a responsabilidade colectiva e a autodisciplina.
Todas as outras facções anarquistas acusam-na de ser “bolchevique” e “leninista”, mas na aplicação do plataformismo à música o concerto de dia 18 de Dezembro na Sociedade Musical União Paredense, no concelho de Cascais (antes de actuações na Sonoscopia, Porto, e no Salão Brazil, Coimbra) implicou uma perspectiva da improvisação que dificilmente se pode contestar. É mais uma forma, e assaz interessante, de improvisar, tão válida quanto as demais, e esteve inserida numa série contínua, mas intermitente, de concertos a que a Clean Feed, responsável pela programação, designa por Combat Jazz, pois inclui apenas formações que desafiam o modelo burguês, instalado e conformista do jazz feito para entreter.
As duas longas peças apresentadas pelo grupo procuraram sempre “compor” o improvisado, numa sistemática procura de, precisamente, organização colectiva, e tanto assim que a música parecia composta. Tudo o que se ouviu dependia da interacção dos quatro músicos, sem lugar para solos no sentido tradicional da função no jazz (incluindo o free) e até na própria música improvisada. Havia a tendência para a construção de "drones” ou bordões como forma de conjugação ou como referência base, ora tocados a quatro, ora só por um ou dois com os restantes instrumentistas a introduzirem elementos contrários, e designadamente texturas e parasitagens sonoras.
O curioso é que, apesar do carácter colectivista da música tocada, cada intervenção individual era discernível e ocupava um lugar próprio, com momentos em que cada um dos músicos tinha espaço para projectar os seus sons. Mas porque a improvisação era grupal, e porque se baseava na gestão de harmónicos e “overtones” (particularmente densos quando o pianista usava uma melódica), soltava-se no ar algo que era, necessariamente, o resultado assemblado dos quatro “imputs” auditivos. Havia quatro improvisadores com as suas identidades pessoais e havia um “mix” natural (porque integralmente acústico, sem utilização de microfones) das suas contribuições, muitas vezes autonomizando-se e ganhando uma existência à parte.
O tipo de recursos que os Platform aplicam aproxima-os de certas práticas da electrónica, mas era bem patente a condição acústica da música tocada, pois alicerçava-se sobre os timbres de instrumentos convencionais. Neste domínio, se todos estiveram bem, destacou-se Xavier Charles com o seu infindável vocabulário e um rol de surpreendentes técnicas que conseguiam fazer com que o clarinete ultrapassasse as suas limitações físicas, por vezes parecendo já não ser um clarinete. A música era meditativa, suave, mas transparecia nela uma inquietude e uma intensidade que contrastavam com os ambientes e os estados de espírito conjugados. O único termo comparativo que posso dar é o que fazem os franceses Hubbub. Pois, foi tão bom quanto isso...