Imaxina Sons
Tempo de resistência
Com menos meios, o Festival de Jazz de Vigo conseguiu este ano manter o nível a que habituou o seu público. Ohad Talmor Trio, Marc Ribot Ceramic Dog e Orquestra de Jazz da Galicia deixaram impressões fortes, bem como as duas participações portuguesas: Maria João Ogre e Gil Dionísio. Mas conseguirá manter-se assim nas próximas edições?
Como se avalia um projecto de festival? Apenas pela qualidade dos seus concertos? Pela adesão do público e o impacto que tem numa cidade? E dados os tempos que correm de cortes sistemáticos na cultura, pela capacidade de manter os conceitos originais apesar de todos os constrangimentos de “adaptação à realidade”? Dirão os leitores, com certeza, que todos esses factores são determinantes, mas permitam-me dizer que nenhum outro é tão esclarecedor quanto o último para determinar a força real de um evento.
Quem assistiu à 11ª edição do Imaxina Sons, em Vigo, na vizinha Galiza, percebeu que houve um corte no orçamento deste festival promovido pela autarquia de Vigo na passagem de Junho para Julho. Em Espanha, tal como em Portugal, vive-se uma política de austeridade que tem as artes, e sobretudo as minoritárias (o jazz, por exemplo), como primeira vítima. Este ano não houve concertos na Praza da Constitución, tendo as segundas performances de cada noite passado para a pedestre Rúa Londres, situada por detrás do Marco, bem mais pequena em termos de lotação. O cartaz para este espaço adaptou-se à nova dimensão, trocando nomes da primeira linha por músicos bem menos interessantes.
Os efeitos dessa circunstância foram, no entanto, eficazmente menorizados pela oferta centrada no Auditório do Concello e no Marco, ex-libris cultural de Vigo. Foi no primeiro, e logo a abrir o festival, que actuou Maria João com os electrónicos Ogre. E foi no Marco, reservado especialmente para as tendências mais “vanguardistas”, que tocou a solo o violinista e vocalista Gil Dionísio. O Imaxina Sons faz sempre questão de incluir portugueses nas suas programações – assim acontecia quando o director artístico era o contrabaixista Baldo Martínez e assim tem sido com o pianista de jazz e compositor de música para cinema Nani García.
Arranque simbólico
O simbolismo da abertura com a cantora de Lisboa era imenso, de resto – se os galegos têm um apreço especial pelo nosso país e os seus amantes do jazz estão atentos ao que por cá se passa, acrescia a particularidade de Maria João ter colaborado na década de 1980 com um grupo pioneiro do jazz galego, os Clunia de García, precisamente. Foi como que um regresso a casa – a uma das suas casas – da lusitana. A jazz.pt não pôde assistir a estes concertos devido às restrições financeiras impostas à edição de 2015 do festival (só nos últimos três dias estiveram presentes críticos e jornalistas de fora de Vigo), mas deixaram ambos as melhores impressões.
Para além destas duas propostas não nos foi possível, portanto, assistir às prestações do Dani Font Trio, de Carlos López, de L.A.R. Legido, de Eli Gras ou das formações que integraram o painel do “Jazz Fuera de Sítio”, aquelas que aconteciam na rua com o propósito de haver um contacto directo com a população. Mas estivemos lá para assistir aos demais pratos fortes, designadamente Ohad Talmor Trio, Marc Ribot Ceramic Dog e Orquestra de Jazz de Galicia. Todos eles resultando numa demonstração de que se pode ainda fazer muito com menos meios, mantendo o mesmo nível a que o Imaxina Sons nos habituou. Ribot e a “big band” galega tiveram, inclusive, salas esgotadas e criaram enormes ondas de reacção.
Um jazz cinético
Numa perspectiva especificamente musical, o maior interesse veio da actuação do saxofonista tenor Ohad Talmor com Miles Osazaki na guitarra e Dan Weiss na bateria. É muito curiosa a maneira de compor do israelita que em Portugal já ouvimos com Lee Konitz e a Orquestra Jazz de Matosinhos e com Steve Swallow e Adam Nussbaum: as estruturas dos temas são cinéticas, cada conjunto de notas antecipando o outro que vem a seguir, pressupondo de imediato uma noção de movimento. Os desenvolvimentos funcionavam por elipses, ora com repetições de motivos, ora com pequenas derivações que iam ganhando direcção com o tempo. Os focos eram sempre muito precisos, fechados sobre si mesmos, rigorosos, talvez até um pouco cerebrais.
Talmor tem um som doce de tenor, muito alicerçado no legado saxofonístico do cool, mas sem se parecer com alguém em particular dessa tendência histórica do jazz. Se o líder do trio foi insistentemente melódico, Osazaki introduziu uma enorme riqueza harmónica no conjunto. Weiss, pelo seu lado, é uma máquina de ritmo, e em várias ocasiões do concerto ouvimo-lo a entrar em síncopes bastante próximas do drum ‘n’ bass. Quando, em homenagem ao recentemente falecido Ornette Coleman, os três interpretaram quatro composições do inventor do free jazz numa única peça com enquadramento blues, fez-se luz. A música de Ohad Talmor pode ser uma continuação das premissas de Warne Marsh, Paul Desmond, Jimmy Giuffre e do próprio Konitz, mas não está longe dos conceitos harmolódicos. Pena, no entanto, que o guitarrista se tenha perdido no meio desta colagem de referências…
Entre o “riff” e a abstracção
Os Ceramic Dog dividiram a assistência: houve quem adorasse e quem odiasse. Alguns já sabiam ao que iam – a uma prestação de rock –, mas outros estariam à espera de algo mais reconhecível como jazz. Foram esses que se queixaram do alto volume de som e da muita distorção guitarrística, mas até eles ficaram assombrados com as quase duas horas de energia elevada a um estado puro. De energia, com Shazad Ismaily continuamente a trocar de instrumentos (baixo, guitarra, sintetizador, percussão, ukulele) e Ches Smith a dividir-se entre a bateria e a electrónica, mas também de trabalho desconstrutivo . A intervenção do grupo foi bem mais instrumental do que aquela que a banda de Marc Ribot teve no Jazz em Agosto do ano passado, e igualmente mais polarizada entre o “riff” roqueiro e o abstraccionismo improvisado.
Ribot deixou para o “encore” a sua canção de protesto, “Masters of Internet”, em cuja letra reivindica que os direitos de autor sejam respeitados nesta época de “downloads” grátis. Se a mesma ganhou maior relevo com a polémica que o guitarrista teve recentemente com o produtor Steve Albini, com este a defender que toda a música deve ser disponibilizada livremente na Rede, o certo é que teve maior peso, para os ouvidos do público, a versão do clássico “Take Five” em que longamente os Ceramic Dog se demoraram. Tão representativo de um género musical quanto este “standard”, talvez só “Salt Peanuts” tenha igual significado. Ouvir a melodia que Desmond escreveu para o Dave Brubeck Quartet com a crueza do rock é algo de estranho e esse elemento de confusão foi explorado até ao limite.
Sentimento galego
A Orquestra de Jazz da Galicia era um projecto antigo de um dos mais importantes músicos de jazz da Galiza (e de Espanha), Roberto Somoza, e teve a sua grande estreia no Imaxina Sons. A ideia era combinar a música tradicional da Galiza, muito semelhante, por sinal, à do Norte do nosso país, com o jazz. Os arranjos para os seus 20 elementos eram do próprio Somoza com base numa selecção de Pedro Lamas (saxofone soprano, gaita-de-foles) e neles tiveram especial relevo, entre os muitos solos, a sanfona de Anxo Pintos e o vibrafone de Ton Risco. A equação variou entre desfechos mais felizes e outros menos conseguidos, chegando a um patamar de excelência aquele que teve Alberto Conde como convidado especial ao piano.
Natural seria que este fosse chamado, ou não tivesse sido ele a conceber o que ficou conhecido como “muiñeira jazz”. A introdução do tema foi feita apenas com o piano, tocado inicialmente no seu interior, com Conde a manipular directamente as cordas. Depois, a orquestra adicionou densas camadas de complexidade. Se o jazz que se ouviu era o convencional, “mainstream”, Roberto Somoza demonstrou assim o seu interesse pelas facetas mais experimentais e criativas deste idioma. Pelo seu lado, o pianista confirmou plenamente o seu estatuto de músico superlativo, documentado em discos como “Villa-Lobos A New Way” e “Human Evolution”, este editado em Portugal pela JACC Records. Outros convidados foram Xabier Diaz (voz, pandeireta), Toño Dominguez (voz), Rodrigo Romani (harpa céltica) e os Pandereteiros de O Fiadeiro.
O momento não podia deixar de despertar o sentimento regionalista (nalguns casos até nacionalista) dos viguenses, e o certo é que a plateia ovacionou de pé o ensemble durante incontáveis minutos, antes e depois do regresso ao palco de todos os intervenientes. Foi, pois, em festa, e com conotação política, que terminou o Imaxina Sons de 2015. Menos história tiveram as contribuições do Miguel Lamas Cuarteto, dos Chupaconcha e da dupla Telmo Fernández / Marcos Pin. Por detrás do Marco, os primeiros dedicaram-se a uma fusão datada, muito anos 1980, os segundos quiseram colar o estilo de Nils Peter Molvaer ao hipnotismo do techno e os últimos ficaram-se pela transposição de “standards” para um par de guitarras. Mais bem-sucedido foi, no final do tributo aos falecidos críticos Javier de Cambra e Juan Claudio Cifuentes na Galeria Javier Teniente, o Juyma Estévez Trio. Sobretudo quando o líder contrabaixista, o pianista Alberto Vilas e o baterista Juan Manuel Estévez se entregavam aos tempos lentos, finalmente revelando uma personalidade musical própria e cheia de poesia.
Apesar do “emagrecimento” a que foi forçado, o Imaxina Sons deste ano conseguiu manter a bitola alta. Resta saber se a continuação desta dieta em próximas edições não lhe danificará a saúde de forma irreparável. Chegou a hora de defender a sobrevivência daquele que é um dos mais importantes festivais de Espanha – e já agora, dada a constante presença de músicos (e de assistentes) portugueses, de Portugal. Para todos os efeitos, Vigo fica a hora e meia de distância do Porto…