Susana Santos Silva / Joe Morris
Uma casa dentro de uma casa
A Parede teve outro grande nome do jazz a tocar em mais um concerto da Combat Jazz Series. Joe Morris passou pela SMUP no dia 7 de Julho e levou consigo a portuguesa Susana Santos Silva. Juntos, construíram uma casa. Merecia prémio de arquitectura…
O concerto estava anunciado como um solo de Joe Morris. Depois de, por exemplo, Joe McPhee e Ken Vandermark, mais um grande nome do jazz da actualidade ia apresentar-se numa vila dos arredores de Lisboa, Parede, onde até há muito pouco tempo tal coisa seria inimaginável. Passou a ser, graças ao novo fôlego tomado pela SMUP – Sociedade Musical União Paredense e à missão da editora discográfica Clean Feed, agora sediada nesta paragem da linha de Cascais, em levar alguma da melhor música que se está a fazer no mundo com selo jazz para aquele espaço muito próximo das praias locais. Era para ser um solo de Joe Morris, mas havia um convidado-surpresa: o guitarrista norte-americano levou consigo a trompetista Susana Santos Silva, com ela formando um duo que ficará para a história, mesmo que não volte a repetir-se.
A actuação começou morna, contrastando com a temperatura quente do magnífico sótão da SMUP, romanticamente iluminado por dois candeeiros. A portuguesa estava claramente intimidada, sabendo que ocupava ao lado de Morris um lugar em que já estiveram nomes lendários deste género musical como Anthony Braxton, Eugene Chadbourne, Matthew Shipp, William Parker ou Billy Bang. Se durante alguns minutos ouvimo-la simplesmente a apalpar terreno, procurando o que fazer, o que acrescentar à tricotagem de Morris, depressa no entanto a jovem instrumentista do Porto encontrou ideias e colocou-as em equação, já vencedora de quaisquer receios que a tivessem tomado.
Talvez por influência da arquitectura envolvente, Joe Morris foi construindo um chão, um espaço habitável, parecendo que Derek Bailey havia acabado de descobrir os blues. Susana Santos Silva compreendeu que tinha de fornecer a mobília e imaginar os movimentos determinados por esta. Em simultâneo, o seu parceiro de além-mar ergueu as paredes da casa que se estava a montar, uma casa imaginária dentro da casa física em que nos encontrávamos. Se a coisa tivesse ficado por aí, já teria sido bom, mas depois de uma pausa de interiorização em que a trompetista colocou o instrumento no colo, fechou os olhos e apenas se pôs a ouvir o que Morris fazia, ei-la que também forneceu o telhado.
Para tal, Santos Silva trocou os primeiros fraseados para-melódicos por uma exploração de técnicas extensivas, fosse com metodologias de sopro invulgares ou colocando no bocal do trompete um CD, com resultados que nenhuma surdina proporcionaria. Era por aí que Morris seguia, em progressões horizontais e verticais, e quando o trompete se decidiu a entrar por outros sons, outros processos, outras lógicas, a música colou e a casa completou-se. Em termos técnicos e de inventividade, este bem pode ter sido o melhor concerto de sempre da portuguesa. E até Joe Morris surpreendeu, acrescentando ao seu discurso habitual materiais que não lhe eram comuns, com utilização de um “e-bow”, preparações móveis e um curioso efeito de pedal que tornava a sua guitarra eléctrica semi-acústica numquase cordofone electrónico. Morris já não é o guitarrista seco que em tempos foi.
Mas porque foi ele quem se encarregou das molduras de tudo o que se ouviu, do lado de Susana Santos Silva, sobretudo, é que veio a escuta e a reacção. Morris nunca se retirava. O chão e as paredes podiam mover-se, podiam ser moles, mas eram constantes. Tinham medidas e solidez. Santos Silva entrava e saía, mudava de rumo ou de vocabulário, relacionava-se com os enquadramentos consoante o que estes lhe sugeriam. Pode Joe Morris ter estado mais presente na prestação, mas foi Susana Santos Silva quem a protagonizou. Só um músico extraordinário seria capaz de tal generosidade: o que fez, fez para ela, e ela esteve à altura. Era para ter sido um solo de Joe Morris, mas foi um solo de Susana Santos Silva com o guitarrista a arquitecturar aquilo a que assistimos. Magnífico.
NOTA 1: mais uma vez, a música ambiente do bar instalado no primeiro andar invadiu um concerto da Combat Jazz Series. É uma falta de respeito para com o público e com os músicos, mas a direcção da SMUP não parece preocupar-se com isso…
NOTA 2: o próximo concerto da Combat Jazz Series vai ser a 17 de Julho com outro momento imperdível. Toca o Luís Lopes Lisbon-Berlin Trio, com os alemães Robert Landfermann e Christian Lillinger a juntarem-se ao guitarrista de Lisboa. O grupo pratica um misto de free jazz e noise que com certeza abafará qualquer ruído que venha do andar de baixo. Neste dia ninguém ouvirá o pum-pum-pum do bar.