Jazz im Goethe Garten
Desconcerto das nações
A Europa do jazz fez-se ouvir no jardim do Goethe Institut nas três primeiras semanas de Julho, coincidindo com uma altura em que se duvida já da ideia europeia. Se as actuações do catalão Agustí Fernández e dos franceses Jean Louis elevaram os espíritos, muito houve na 11ª edição do JiGG que não ajudou a comemorar a união dos cidadãos do Velho Continente. Poucas vezes, em tempos recentes, um factor político terá pesado tanto sobre um festival…
Na sua maior parte, os festivais de jazz que se realizam em Portugal são políticos. Têm por detrás a iniciativa de autarquias e isso quer dizer que as agendas dos partidos que governam esses municípios são o que os sustenta. Nenhum deles é, porém, mais político do que o Jazz im Goethe Garten, começando até pelo facto de não ser um festival português, mas alemão. Realiza-se mesmo ao lado da Embaixada da Alemanha (Goethe Institut), ao Campo dos Mártires da Pátria, e o seu propósito tem sido celebrar a Europa.
Ora, acontece que a edição de 2015 do JiGG decorreu na precisa altura em que houve o braço-de-ferro entre o EuroGrupo e a Grécia. Teve início pouco antes do referendo grego e do seu desrespeitado “não” e terminou com a imposição de um pacote de austeridade que é já referido como o mais duro a que alguma vez se sujeitou uma população…
Ou seja, não havia motivos para qualquer celebração, e muito menos para comemorar o conceito que levou à criação da União Europeia. Os títulos da Imprensa têm sido bastante explícitos quanto a isso: o acontecido representou o fim da Europa, tal como esta foi originalmente idealizada. E no entanto, manteve-se no jardim do Goethe Institut o ritual dos inícios de concerto, com embaixadores, adidos culturais ou responsáveis de institutos nacionais a representarem o mesmo papel de sempre, exaltando uma unidade e uma solidariedade que muito obviamente deixaram de existir. Afinal, estávamos em casa dos patronos da Europa do dinheiro, aquela que nasceu das cinzas da Europa da democracia e das liberdades.
Aliás, se em anos anteriores ninguém terá reparado na ausência da Grécia nos programas do JiGG, este ano ela foi especialmente evidente e teve, inclusive, um peso simbólico. Definido que está o contexto, falemos sobre a música… (R.E.P.)
Albatre
Já a meio do concerto, com metade do público sobressaltado com aquilo que ouvia, informava o baixista Gonçalo Almeida: «Nós não tocamos jazz para casamentos.» Contudo, logo depois, o trio não rejeitava a hipótese de actuar em divórcios. A edição 2015 do Jazz im Goethe Garten arrancava de forma estranha: a ameaça de chuva cancelou o cenário do jardim, levou o concerto para o auditório e mostrou uma música enérgica e barulhenta.
O Goethe Institut abria o seu festival com a música de um trio luso-alemão radicado na Holanda, Albatre, formado por Gonçalo Almeida com Hugo Costa (saxofone alto) e Philipp Ernsting (bateria). Sem paninhos quentes, foi desde logo exposta aquela música suja, densa, pesada: os “riffs” do baixo eléctrico (com efeitos electrónicos) complementavam-se com os gritos intensos do saxofone (com som também tratado por efeitos) e com as descargas enérgicas da bateria. A fórmula exposta no disco “A Descent into Maelstrom” (Shhpuma), não teve qualquer desvio. Foi aqui continuada: sempre em alta intensidade, efervescente, demoníaca. Foi um concerto intenso, mas não consensual – algum público foi abandonando o auditório. Talvez um outro projecto de Almeida, como o quarteto Tetterapadequ ou o trio LAMA, se enquadrasse mais no espírito do JiGG… (N.C.)
Jean Louis
Ao segundo dia regressou o sol e os concertos voltaram a fazer-se no jardim. O grupo que actuou mantinha algumas semelhanças com o espectáculo de abertura: também um trio, composto por uma secção rítmica enérgica e um sopro, tudo mergulhado em efeitos electrónicos. Contudo, os Jean Louis trataram de afastar semelhanças: estes franceses trabalham uma música mais acessível, mais melódica, mais diversificada.
O trio junta Aymeric Avice (trompete), Joachim Florent (contrabaixo) e Francesco Pastacaldi (bateria) e apresentou no Goethe um jazz electrificado. A base do som assentava no trompete e no contrabaixo processados, bem apoiados por uma bateria sempre presente. Por várias vezes o trompete soou mesmo como uma guitarra eléctrica tocada por Jimi Hendrix. Evocando o Miles eléctrico dos “early Seventies”, a música não se deixava soar excessivamente intelectual, «sem vergonha de groovar» - para citarmos um talentoso músico da nossa praça. (N.C.)
Radio.String.Quartet.Vienna
O texto de apresentação do concerto do Radio.String.Quartet.Vienna referia que a particularidade deste quarteto de cordas é não ser clássico. O que se verificou com esta representação da Áustria foi o contrário: do primeiro ao último minuto percebeu-se que Bernie Mallinger, Igmar Jenner, Cynthia Liao e Sophie Abraham são músicos clássicos, e não propriamente de jazz. A forma de tocar e a atitude do grupo são as clássicas, mesmo que interpretando conhecidos temas dos Weather Report e da Mahavishnu Orchestra.
O virtuosismo demonstrado era o clássico, bem como o perfeccionismo dos arranjos e da interpretação. E ainda como a indisfarçável incapacidade para introduzir energia na música e para impactar um padrão rítmico quando as próprias composições de Joe Zawinul e John McLaughlin o exigiam. De resto, nas passagens mais jazz (ou mais rock) o que se ouvia eram, apenas, mimetizações dessas abordagens. Ou seja, este ouvidor saiu do Goethe com a impressão de que tinha assistido a uma mera brincadeira. Bem feita, dada a excelência técnica dos instrumentistas, mas nada que se possa considerar convincente. O projecto até que fica bem no papel, no enunciado de intenções, mas falha no momento da verdade. Com músicos improvisadores outro galo soaria, certamente. (R.E.P.)
Andreas Schaerer / Lucas Nigli
Ver e ouvir o baterista Lucas Niggli é sempre inebriante, e foi ele quem salvou a prestação suíça do JiGG. Andreas Schraerer, esse, desapontou. Enquanto “entertainer”, falando um Português com sotaque brasileiro, mais parecia os nossos comediantes “stand up”: por muito que se esforçasse, não tinha graça. Enquanto vocalista, a coisa ficou-se por pouco mais do que um “beat boxing” mal-amanhado. Há miúdos nos bairros à volta de Lisboa que o fazem bem melhor. A condizer, a manipulação electrónica que Schraerer fazia da voz era primária e pouco interessante.
Uma boa parte do público acabou por se desligar da música que vinha do palco, tratando-a como uma banda sonora de fundo: desataram-se as conversas, como se os falantes estivessem em casa e não houvesse que respeitar os demais. Pois, desunião europeia, acompanhada por cerveja e salsichas alemãs a preço germânico… (R.E.P.)
Agustí Fernández
Ao quinto concerto do festival apresentou-se a solo o catalão Agustí Fernández. Antes de tocar, o pianista tratou de explicar ao público que, para si, mais do que em gravações áudio ou vídeo, «a música é aquilo que acontece no momento». Fernández tratou então de mostrar na prática aquilo que acabara de dizer. Começou por explorar o interior do piano, utilizando diversos objectos, numa verdadeira realização daquilo a que se chama “piano preparado”.
Trabalhou sons atípicos e curiosos, organizando-os e demorando-se nessa pesquisa. Passou depois para as teclas, desenvolvendo aí uma música intensa e trepidante, recheada de ideias e quase sempre numa vertigem de alta velocidade. No final, regressou às cordas. O primeiro “encore” surgiu com um tema hiper-melódico, com todo um excesso de graciosidade e sentimento que contrastou com a actuação prévia. O extenso aplauso do público, rendido, obrigou-o a um regresso ao palco. Foi este o grande momento do 11º Jazz im Goethe Garten… (N.C.)
No Metal in this Battle
A receita dos luxemburgueses No Metal in this Battle é curiosa: pretendem tocar um pós-rock ajazzado com o balanço do afrobeat nigeriano. Se foi o que fizeram, aquilo que tinham a propor com este enquadramento esgotou-se muito rapidamente. A partir de determinada altura, cada novo tema era a repetição do anterior, sem surpresas nem nada a acrescentar. A música esteve permanentemente muito fechada sobre si mesma, amarrando-se às pulsações e às construções colectivas, sem improvisação nem deriva, e sem solos nem respirações.
Tudo num trote monótono a que faltaram elegância e vigor, mas com a perigosa postura de quem acha que descobriu a pólvora. Não houve voo ou sequer um fazer-se à pista na viagem que Pierre Bianchi, Laurent Panunzi, Marius Remackel e Gianni Trono prometiam realizar. (R.E.P.)
Twinscapes
Quem já ouviu Bill Laswell é bem capaz de imaginar o que pode fazer um trio com dois baixos eléctricos acoplados a dispositivos electrónicos (nas mãos de Lorenzo Feliciati e Colin Edwin) e com um baterista apresentado como vindo do metal (Roberto Gualdi). Quem o fez levou com um balde de água fria. A prestação dos italianos (um deles, na verdade, inglês) Twinscapes foi medíocre. Variou entre a elaboração de atmosferas planantes e, regra geral, soporíferas e um “groove” mole e sem sentido de síncope.
O concerto foi pobre, enfadonho e redundante, mais uma vez desviando as atenções da música para o desconcerto conversacional das nações – pelo que ouvi à minha volta, com o caso grego como um dos temas, aliás. (R.E.P.)
Kuu
Tal como abriu, o JiGG fechou com uma proposta mais atípica. Apesar daquilo que os currículos dos músicos envolvidos poderiam fazer prever, os Kuu não praticam propriamente um jazz tradicional. Os portugueses já conhecerão bem o som da guitarra de Frank Möbus, parceiro habitual de Carlos Bica no seu excelente trio Azul e o baterista Christian Lillinger integra o Lisbon-Berlin Trio de Luís Lopes, que já passou pelo Jazz em Agosto. Também o guitarrista Kalle Kalima, com uma longa discografia, não será desconhecido para ouvidos mais atentos. Já a cantora/vocalista Jelena Kuljic surgiu como um elemento-surpresa, assumindo o papel central no grupo.
O quarteto pratica um pop-rock de laivos jazzísticos, com temas que não soam fáceis ou açucarados. No centro está a voz de Jelena, expressiva e maleável, ora entregando-se a uma profunda delicadeza, ora aplicando-se na experimentação vocal. Instrumentalmente não há falhas a apontar, a não ser, talvez, o facto de a guitarra de Möbus ter, infelizmente, um simples e limitado papel rítmico. Já a guitarra Kalima teve um papel mais interventivo, embora as oportunidades para solar fossem reduzidas. A bateria de Lillinger também teve um papel limitado, embora o baterista se consiga fazer sempre notar. Mas se nada há a apontar aos instrumentistas, sobravam aspectos negativos nas composições: soaram pouco interessantes, melodicamente deslavadas, demasiado presas e castradoras. Embora a actuação tenha sido globalmente agradável, com músicos desta craveira esperava-se mais risco e mais aventura, algo que nunca chegou a acontecer. (N.C.)