Mette Rasmussen + Gard Nilssen’s Acoustic Unity
Barriga cheia
Dois concertos numa só sessão da Combat Jazz Series, com músicos da Escandinávia a sobrelotarem o sótão da SMUP e a tocarem desalmadamente. Um grande final de tarde de domingo na despedida do Verão…
É um risco fazer concertos ao fim da tarde, num fim-de-semana, quando brilha o Sol na altura em que o Verão se despede, e a dupla sessão da Combat Jazz Series na SMUP, a 27 de Setembro, poderia ter sido um fiasco. Mas como em cartaz estavam actuações de dois nomes fortes do jazz e da improvisação que se tocam na Escandinávia, o de Mette Rasmussen a solo (foto acima) e o da Acoustic Unity de Gard Nilssen, o sótão da muito dinâmica Sociedade Musical União Paredense ficou apinhado de gente. Aliás, nunca antes um concerto desta área musical naquele espaço teve tanto público. Não cabia mais ninguém.
A jovem, pequena e loira Rasmussen demonstrou com a sua forma abrasiva de tocar o saxofone alto que não é por uma questão hormonal que o jazz tem o som que tem. Não se trata necessariamente de uma descarga de testosterona, apesar da fama criada por este idioma da música dos nossos dias que conta com tão poucos praticantes femininos. A abordagem da dinamarquesa é ácida, agreste, violenta até por vezes, denotando uma expansibilidade de pulmões que nos deixa abismados. O curioso no concerto que protagonizou foi o facto de ter substancializado a estética do grito de Albert Ayler com uma especial atenção pelo detalhe. Regra geral, este tipo de expressionismo exclui qualquer possibilidade exploratória de elementos mais subtis, mas é precisamente a conciliação dos dois opostos que explica o sucesso deste vendaval de trança.
Mette Rasmussen toca o alto com um centro de gravidade mais baixo do que o habitual: o seu instrumento é mais rouco, e mais grave, do que a norma, parecendo um tenor. Mas de repente vai para sobreagudos que quase chegam ao infrasónico, fazendo-nos vibrar os cílios interiores do ouvido e, sim, provocando-nos intencionalmente dor. A ideia de que a música serve para entreter e embalar é-lhe completamente estranha. O seu propósito é outro: agitar as sensibilidades e as consciências. Nunca parou quieta; dançava com o saxofone, fazendo-nos temer, inclusive, que tropeçasse no contrabaixo que aguardava, atrás de si, pela actuação seguinte. Por vezes, para obter um determinado registo, colocava-se de cócoras.
Foi metendo diversos objectos dentro da campânula do sax: uma lata de Red Bull, uma garrafa de água, folhas de papel, uma tampa de plástico. Já não era um saxofone que ouvíamos. Pegou em pequenos sinos, fazendo-os tilintar, como se a performance fosse um ritual de chamamento dos espíritos. Leu um poema em Inglês, a abrir e a fechar uma peça, primeiro em tom de enunciação, no fim com algum sarcasmo, assim modificando o significado das palavras. A própria tradução musical dos versos encarregara-se entretanto de os transformar, levando esse efeito para a sua repetição. Foi duro, mas foi também maravilhoso.
Depois de intervalo, «para beber uma cerveja e fumar um cigarro», como anunciou o programador Pedro Costa, foi algo de muito diferente o que nos ofereceram Gard Nilssen, Andre Roligheten e Petter Eldh, noruegueses os dois primeiros, sueco o último. Se a matriz de Rasmussen estava em Ayler, a Acoustic Unity levou-a para Sonny Rollins. O trio de saxofone tenor (com um soprano adicionado em uníssono e contraponto pelo meio), contrabaixo e bateria “swingou” como pouco acontece no jazz nascido do free. Os temas rápidos eram fortemente “rifados”, confirmando o fundamento no hard bop do projecto, e no meio, para acalmar a cada vez mais agitada assistência, surgiram umas baladas que tinham tanto de pungente como de bizarro.
A primeira vez que ouvi Nilssen foi com os Puma, o grupo de “jam” psicadélico que partilha com o guitarrista Stian Westerhus e o teclista Oystein Moen. E assim como este trio se atira para as águas agitadas do rock, a Acoustic Unity fá-lo para as daquele jazz que não deixa dúvidas quanto à sua identidade. Um jazz que ou é tocado com convicção e entrega ou não levanta voo, e o certo é que, na Parede, o avião descolou da pista numa questão de minutos e subiu muito alto.
Roligheten é outro saxofonista assombroso do Norte da Europa, mais um a que devemos dar atenção. Tem um “sotaque” áspero e uma agilidade que desconcerta: quando damos por ele já está noutro sítio. Há qualquer coisa de exótico no seu fraseado, e não propriamente porque o jingar rollinsiano adoptado pelo grupo nos faz lembrar as influências caribenhas do ícone norte-americano. O improvisador de Trondheim aprecia as menos prováveis das companhias, a exemplo do seu Madajazzcar, o colectivo que formou com músicos de Madagáscar. Eldth, por sua vez, possui um som profundíssimo de contrabaixo e uma percepção das síncopes que nos atingiu o peito e nos provocou deliciosas taquicardias. O líder baterista, Nilssen, é um implacável motor de combustão. Não num sentido determinista: mais do que dirigir, deixa-se levar pelo momento. Como se percebeu, na ocasião, com os seus gemidos e urros de puro prazer…
No final, a Gard Nilssen’s Acoustic Unity chamou Mette Rasmussen para se lhe juntar. Se já estávamos de barriga cheia, o que aconteceu foi sobredose. Ela e Roligheten foram um festival de harmónicos, de alucinantes choques de frequências. Sentado a meu lado, o saxofonista catalão Albert Cirera agitava-se na cadeira, entusiasmado. Mais uma vez, fez-se história na SMUP. Estamos a viver tempos incríveis…