Angrajazz
Águas mornas
O festival açoriano cumpriu a sua 17ª edição com concertos algo mornos. Os históricos Lee Konitz (foto acima) e René Urtreger estiveram aquém das expectativas, o primeiro claramente devido ao peso da idade. Gregory Porter actuou excepcionalmente no domingo, devido ao atraso do seu voo no dia anterior. Os destaques foram portugueses, com o Sexteto de Jazz de Lisboa e Ricardo Toscano, inserido neste grupo e como solista da Orquestra Angrajazz…
A 17ª edição do Festival Internacional de Jazz de Angra do Heroísmo prometia três noites de música, mas acabou por dar quatro. Pela Terceira passaram grandes nomes portugueses, europeus e americanos, além de jovens valores nacionais. Ouviu-se Orquestra Angrajazz, René Urtreger Trio, Jeff Denson Trio com Lee Konitz, Sexteto de Jazz de Lisboa e Tord Gustavsen Ensemble. O popular cantor Gregory Porter chegou atrasado, mas não falhou.
Orquestra Angrajazz & Ricardo Toscano
A primeira noite, 1 de Outubro, quinta-feira, arrancou com a Orquestra Angrajazz, projecto local que tem sido promovido pelo festival. Sob a direcção de Claus Nymark e Pedro Moreira, a orquestra contou nesta actuação com a participação de um convidado especial, o saxofonista Ricardo Toscano - que se havia apresentado no festival com o seu quarteto na edição do ano passado.
O concerto abriu com “Long Ago and Far Away” e foi passando por vários “standards”, num repertório absolutamente clássico, sem pingos de modernidade. Entre os instrumentistas do ensemble destacou-se desde cedo o trompete de Paulo Borges. Também a pianista Antonella Barletta, apesar de discreta, se fez notar quando solou. Outro destaque inevitável foi a cantora Sara Miguel, que conquistou rapidamente o público com a sua voz bem segura. Já a presença de Ricardo Toscano acrescentou outra intensidade à música, mostrando-se especialmente interessante no tema “Nostalgia in Times Square”.
Após uma actuação globalmente segura, com alguns momentos de nível elevado, o grupo fechou a actuação com um bónus ellingtoniano, “Take the A Train”.
René Urtreger
Na mesma noite actuou o trio do francês René Urtreger. O veterano pianista, que gravou com Miles Davis a banda-sonora “Ascenseur pour l’Échafaud”, apresentou-se ao lado de Yves Torchinsky (contrabaixo) e Eric Dervieu (bateria). A actuação arrancou com dois “standards”, trabalhados à volta de um pianismo tranquilo - menos Bill Evans, mais Monk, mas sempre pouco aventureiro.
Torchinsky, no contrabaixo, mostrava-se extremamente expressivo fisicamente, expressividade essa que se estendia à intensidade da sua música. Na bateria, Dervieu encontrava na sua aparência tão passiva o reflexo da sua participação instrumental. O trio homenageou quase todos os deuses (Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, Count Basie, Charlie Parker), tendo ainda interpretado alguns originais do pianista - um deles novíssimo, que teria sido escrito há poucos dias.
Fechando o concerto, globalmente morno, o pianista homenageou um outro pianista, um dos pioneiros e inovadores da história: Bud Powell, com “Un Poco Loco”, numa das interpretações mais entusiasmantes da noite.
Jeff Denson Trio
A segunda noite de concertos, sexta-feira, abriu com a actuação do Jeff Denson Trio, ao qual se juntou o saxofonista convidado Lee Konitz. Juntando as funções de contrabaixista e vocalista, Denson apresentou a mesma música que foi registada no disco homónimo, editado ainda este ano. Ao lado de Denson encontravam-se Dan Zemelman no piano e Alan Hall na bateria.
O trio arrancou com “Blue Skies”, clássico que revelou desde logo a voz insuficiente de Denson, além de um contrabaixo pouco interessante. A bateria mostrou-se competente, mas quem mais se destacou positivamente no trio foi mesmo o piano de Zemelman – o elemento mais interessante do grupo, imaginativo, com alguns pequenos desvios. Ao segundo tema entrou Lee Konitz, saxofonista veteraníssimo, em modo tranquilo.
Já em quarteto, foi interpretada a composição “Baby”, um original pouco conhecido de Tristano. A ligação a Lennie Tristano, antigo mentor de Konitz, fez sentido pela conexão e pela influência no saxofonista (referência fundamental) e foi reforçada ao longo da noite. Konitz, com o peso da história, merece todo o respeito, mas é importante assumir que o peso da idade (87 anos) não lhe permite tocar a música com a agilidade necessária. O lendário músico fez algumas intervenções breves no saxofone alto, mas na maior parte do tempo encheu os temas na sombra, vocalizando e improvisando.
O grupo passou por peças como “Body and Soul”, “Nature Boy” (composição do génio Eden Ahbez, popularizado por Nat King Cole) e “Subconscious-Lee” (original do próprio Konitz, um tema-assinatura), fechando com “Skylark”. O alinhamento prometia, a execução desiludiu muito. A memória de Lee Konitz não ficará beliscada, mas preferimos mergulhar na imensidão da sua música gravada.
Sexteto de Jazz de Lisboa
Foi um grupo fundamental da história do jazz português e regressou recentemente para uma nova vida. O Sexteto de Jazz de Lisboa, grupo que marcou a década de 1980 e editou um único disco (“Ao Encontro”, 1988), reuniu-se neste ano para algumas apresentações ao vivo. Juntaram-se Mário Laginha, Edgar Caramelo, Tomás Pimentel, Pedro Barreiros e Mário Barreiros. A estes, acrescenta-se o saxofonista Ricardo Toscano, que substitui o saxofonista Jorge Reis, falecido no ano passado.
Tendo por base as composições de Laginha e Pimentel, o sexteto desenvolveu um jazz orgânico, com boa dinâmica colectiva. Tendo Laginha como figura central, Pedro Barreiros evidenciando-se com bons solos de contrabaixo. Toscano explorou solos muito intensos e aplaudidos, sendo das figuras mais destacadas da formação.
Foram interpretados temas históricos como “Descolagem”, “4+3” ou “Balada Para o Meu Filho”, e Mário Laginha ainda aproveitou para mostrar um tema original. Muito aplaudido, incluindo “encore” e aplauso em pé, este foi sem sombra de dúvida um dos melhores concertos do festival.
Tord Gustavsen Ensemble
Na noite de sábado actuou o Tord Gustavsen Ensemble. Oriundo da Noruega, o pianista apresentou-se na companhia dos habituais parceiros Tore Brunborg (saxofones) e Sigurd Hole (contrabaixo). Já na bateria, em vez do colaborador habitual, Jarle Vespestad, neste concerto açoriano Gustavsen contou com o apoio da baterista Siv Øyunn Kjenstad.
A música de Gustavsen assenta amarras naquele que é chamado de “som ECM”, que de resto caracteriza a maior parte das propostas da editora de Manfred Eicher: uma música cristalina, melódica, atmosférica e pouco aventureira. O piano delicado de Gustavsen embalava tranquilamente, as composições controladas definiam o espaço. Reverentes à música e ao líder, Brunborg nos saxofones tenor e soprano (curvo) e Hole no contrabaixo mostraram prestações subtis. Já na bateria, Kjenstad esteve demasiado marcante. Deveria ter optado por uma prestação mais recatada, mais económica, para fazer fluir mais naturalmente a música do quarteto.
A actuação do grupo passou, sobretudo, pelo disco “Extended Circle” (de 2014), sendo um dos temas mais interessantes a abaladada “Devotion” que, nas palavras do pianista, se trata de uma «aleluia não dogmática». Paisagística, esta música arde em lume brando, mas foi conquistando rapidamente o público. Apesar da toada geralmente tranquila, verificaram-se alguns momentos de maior entusiasmo, com Gustavsen a levantar-se do banco enquanto tocava. Além do piano clássico, o pianista também se serviu do som do piano processado electronicamente (embora de forma subtil, quase escondida).
Oquarteto reinterpretou ainda um antigo tema tradicional norueguês, “Eg Veit I Himmerik Ei Borg” (“A Castle in Heaven”), retrabalhado com toda a elegância, o rigor e o vigor. Características que, aliás, definem toda a sua actuação no festival.
Gregory Porter
O muito esperado Gregory Porter perdeu um voo de ligação e acabou por não chegar a tempo para actuar na noite de sábado, conforme estava previsto. A organização do Angrajazz resolveu rapidamente a situação: prolongou o festival por mais um dia e reagendou a actuação do cantor para a poite de domingo, dia 4. Infelizmente, já estávamos de regresso ao continente, mas, segundo nos relataram, contou com «casa cheia e com o sucesso esperado».