Color Sound Frames
Improvisação sinestésica
Num ciclo de três dias dedicado por Serralves à interacção do cinema e do vídeo com a música, estiveram em grande plano práticas de improvisação que coabitam com as do jazz e da música improvisada. Razão pela qual improvisadores como Werner Dafeldecker e Joachim Nordwall estiveram envolvidos. A jazz.pt foi lá espreitar.
Não é só na música, com o jazz e a chamada música improvisada, que se pratica a improvisação. Outras tendências da arte dos sons e outras disciplinas artísticas, em especial a dança, o teatro e a performance, adoptaram essa metodologia. Até em domínios menos previsíveis, como os do cinema experimental e da vídeo-arte, a criação no momento tem-se desenvolvido exponencialmente – o que é, de todo, natural, pois desde pelo menos a passagem do século XIX para o XX as aspirações à sinestesia vêm procurando a instantaneidade da fruição combinada dos sentidos. O ciclo Color Sound Frames, promovido pela Fundação de Serralves entre 20 e 22 de Novembro passado, associando som e imagem, foi uma esclarecedora mostra disso mesmo.
Ao longo dos últimos 100 anos a evolução da tecnologia tem permitido surpreendentes desenlaces nesse campo que, pela sua natureza, se designou por “intermedia”, e a série programada por Pedro Rocha no Porto focou-se, precisamente, na utilização de diversos equipamentos e “instrumentos”, uns de ponta, digitais, e outros recuperados do tempo, como o Super 8, os projectores de 16mm, velhos osciladores e dispositivos electrónicos “vintage”. O facto de a série de eventos ter recuperado o nome de um filme de Paul Sharits datado de 1974, e intitulado “Color Sound Frames”, mais iluminou essa perspectiva de desbravamento de caminhos. Mesmo no sentido em que, com meios obsoletos, ainda é possível fazer algo de novo ou, pelo menos, algo que dá uns passos adiante relativamente àquilo que foi realizado pelos pioneiros.
Rothko em movimento
Como não podia deixar de ser, músicos com importantes trajectos na improvisação, e até no jazz, estiveram envolvidos. Foi o caso de Werner Dafeldecker, contrabaixista austríaco que conhecemos dos Polwechsel e de associações com Axel Dorner, Burkhard Beins, Mathias Muller, Kai Fagaschinski, Andrea Neumann ou Michael Thieke – apresentou-se duas vezes ao lado do cineasta Guillaume Cailleau . Nas mesmas circunstâncias esteve o sueco Joachim Nordwall, parceiro de figuras como Mats Gustafsson, Christine Abdelnour e Mark Wastell, e que na ocasião estreou uma parceria com Greg Pope. Muito por via da plena assunção do factor “improv” por parte destes dois artistas sonoros, bem como da relevância que tem a improvisação no trabalho de Cailleau e, mais ainda, no de Pope, foram as suas intervenções que mais se destacaram neste festival de três dias.
Guillaume Cailleau e Werner Dafeldecker tiveram duas sessões, uma com “Resonator I” e a outra com “Resonator II”, bastante diferentes em termos de aplicações tecnológicas. A primeira foi a mais primária, analógica e manual, envolvendo dois projectores Super 8 e dois geradores de sinal. O que surgiu na tela parecia Rothko em movimento, com sucessões rapidíssimas de manchas de cor. Pelas colunas saíam estalidos percussivos com diferentes velocidades, em sincronia com o próprio ritmo das imagens. A simplicidade dos recursos contrastava com a eficácia e a beleza dos resultados. A segunda peça já era de laboração mais complexa, por um lado contextualizando digitalmente o aproveitamento de restos de películas e o efeito de agentes químicos e por outro adicionando mais camadas e mais detalhes no plano auditivo.
Greg Pope e Joachim Nordwall apresentaram o projecto “Cipher Screen”. Com um passado no punk e na performance-arte , o fundador do colectivo Loophole Cinema e nome incontornável do “live cinema” vem destruindo a noção de que cinema significa filmar imagens para mais tarde as reproduzir – o seu cinema tem o tempo real como factor distintivo. E destruir, para ele, é a forma como cria. No auditório de Serralves, Pope foi intervindo na película de 16mm com um berbequim e outras ferramentas perfuradoras, assim produzindo não só o que víamos como a base do que ouvíamos, com a mediação dos processamentos de Nordwall. A actuação remeteu-nos para a personagem de um inesperado texto de Walter Benjamin, “Der Destruktive Charakter”, com a substancial diferença de que o destruidor do filósofo alemão «evita a criatividade» e Pope procura-a.
Coincidências electromagnéticas
Se ambas estas participações eram colaborativas, juntando artistas do olho e do ouvido para a obtenção do que era pretendido, já no caso da austríaca Billy Roiz – que em outras circunstâncias trabalhou com improvisadores como Martin Brandlmayr, eRikm, Burkhard Stangl ou Jerôme Noetinger – imagem e som tinham a sua simultânea produção dependentes apenas de si. Com um computador, gira-discos, baixo eléctrico, sintetizador de vídeo, mesa de mistura de vídeo e outra parafernália numa mesa emaranhada de cabos, o que fez foi gerar e gerir coincidências electromagnéticas. Com a vivacidade das situações efémeras e irrepetíveis.
Também o britânico Theo Burt integrou as duas abordagens em “Tilling Sessions” (substituin o programado “Colour Projections”, devido a problemas técnicos), mas fê-lo de outro modo, e bem dentro do espírito da “computer art”. O mesmo algoritmo com que formava as figuras geométricas que surgiam no ecrã era o que originava a trama musical. A um poliedro, um círculo, um quadrado correspondia uma determinada onda sonora, e a sua sucessão traduzia-se no alucinante disparar de metralhadora a que assistimos e que fez tremer o chão da sala.
Menos interessantes foram as duas restantes sessões do Color Sound Frames. Sofrível a que juntou o português, residente em Berlim, Pedro Maia com os suecos Shxcxchcxsh, por desmérito destes, e francamente decepcionante a da dupla canadiana Le Révélateur. O filme em celulóide com elementos de “feedback” de Maia esteve bem, mas o “glitch” e os “broken beats” do duo de capuz, anónimo e sem rosto, não só soaram datados, lembrando-nos a electrónica dos anos 1990, como tiveram uma actuação descosida e derivativa. Por sua vez, o músico Roger Tellier-Craig – que chegou a integrar conhecidos grupos como Godspeed You! Black Emperor e Fly Pan Am – e a videasta Sabrina Ratté propuseram algo que destoou de tudo o mais: um pobre videoDJing e uma música de frágil e vazia grandiosidade “sinfónica”.
Faria bem ao jazz e à música improvisada deixarem de mirar o seu próprio umbigo e observarem o que se cria em outras áreas com a improvisação, mas no público sempre numeroso do ciclo não reconheci nenhum músico deste circuito. É pena, porque havia algo para aprender…