Big Bold Back Bone
Viagem de automóvel
O quarteto de Marco Von-Orelli, Luís Lopes, Travassos e Sheldon Suter apresentou na Parede a sua visão de uma música “não-desenvolvimentista” em que, afinal, muito ia sub-repticiamente acontecendo. Os dois suíços brilharam, mas os portugueses mantiveram-se discretos, o que fez com que o concerto não entusiasmasse. Talvez da próxima vez, como na anedota do passeio motorizado pelas montanhas da Suíça…
Há uma anedota, criada pelos próprios suíços para se rirem de si mesmos, em que um casal do país dos relógios faz uma longa viagem de automóvel durante a qual os seus diálogos são mantidos com pausas de silêncio entre uma pergunta e uma resposta, um comentário e a reacção a este. A primeira frase é proferida pelo marido: «Foi bom ontem à noite, não foi?» A mulher leva 20 minutos a responder, fazendo-nos adivinhar que a sessão de sexo de que falam foi igualmente muito lenta e espaçada. Quem me contou este exemplo do acutilante humor alpino foi um importante músico da cena de Berna, Günter Müller, e parece explicar bem a abordagem ao jazz estático feita na SMUP, a 28 de Novembro, pelo quarteto luso-suíço Big Bold Back Bone. Tal como neste passeio motorizado, parecia não acontecer muita coisa, mas na verdade a música estava em movimento.
Marco Von-Orelli, Luís Lopes, Travassos e Sheldon Suter têm como coordenadas musicais a reiteração de motivos e o estabelecimento de bordões, aderindo ao tipo de “droning” que vem caracterizando uma área muito específica da música improvisada, aquela que a revista britânica Wire, tão lesta a produzir rótulos, carimbou como EAI, iniciais para Electro-Acoustic Improvisation. É nesse domínio que o grupo se insere, associando instrumentos acústicos (o trompete de Von-Orelli, a bateria de Suter) ao eléctrico de Lopes (guitarra) e à parafernália electrónica de Travassos, esta englobando os circuitos integrados de manufactura do também responsável da editora Shhpuma e “designer” gráfico da Clean Feed, gravadores de cassetes transformados e objectos ultra-amplificados.
Mas assim como é verdade que mesmo numa música dita “não-desenvolvimentista” há movimento, com progressivas introduções de pequenos elementos transformadores, subtis variações, as intrigas sonoras apresentadas pelos Big Bold Back Bone iam avançando, rompendo caminho por via do detalhe e do sub-reptício. Com igual, ou semelhante, conjunto de materiais, aumentavam ou diminuíam as dinâmicas e subiam ou desciam de intensidade, umas vezes aproximando-se do sussurro, outras ganhando uma imponência quase orquestral. Como sabe quem conduz, um percurso de carro faz-se por constantes diferenças topográficas, seguindo o declive das colinas ou a planura dos vales. Assim foi o que se ouviu na Parede – algo de muito diferente das montanhas-russas que acontecem quando se perde o rumo de uma improvisação que, ao contrário desta, procura ser fiel ao princípio de nunca se repetir.
Acresce que os Big Bold Back Bone têm na EAI apenas os fundamentos. As bases de sustentação podem ser as texturas abstractas e o “bruitismo” dessa tendência, mas a esse plano adicionam melodia, harmonia e ritmo, os alicerces da musicalidade tal como é convencionalmente entendida, ainda que os fraseados melódicos surjam fragmentados, as construções harmónicas se pretendam imediatistas e a pulsação seja quebrada, polirrítmica ou arrítmica. É desse lado que vem o jazz, muito centrado no trabalho do trompete (e do trompete de vara) de Marco Von-Orelli. Se neste concerto o ouvimos a partilhar os burburismos de Axel Dörner, também nos remeteu para a sonoridade quente de um Don Cherry, a doçura de um Miles Davis e até a languidez de um Kenny Wheeler.
Notou-se, no entanto, um desequilíbrio entre os préstimos dos dois suíços e as contribuições dos dois portugueses, e esse problema fez com que sentíssemos que estávamos não diante de um quarteto, mas de dois duos – o que não se verifica no (excelente) disco lançado em 2013 pelo projecto, “Clouds Clues”, e não se detectou nas poucas anteriores apresentações ao vivo no nosso país. Os Big Bold Back Bone têm uma existência intermitente. Só muito de vez em quando os quatro músicos se reúnem, e a última vez em que isso se verificou foi para uma digressão pela Suíça no passado mês de Maio. Ora, Von-Orelli e Suter mantêm com regularidade um dueto, Lost Socks (tocou dia 27 no Creative Fest), e ficou bem patente o entrosamento que têm entre si, deixando inevitavelmente os outros parceiros de fora. Já Lopes e Travassos não costumam trabalhar juntos e, nesta ocasião, foram demasiado zelosos na tarefa de introduzir padrões e grão nas tramas. Fizeram pouco mais.
Ou seja, se os suíços conquistaram os seus próprios espaços de projecção num contexto que era iminentemente colectivo, com magníficos solos de Von-Orelli e uma notável e muito imaginativa prestação do baterista e percussionista, Luís Lopes e Travassos mantiveram-se algo passivos. Na maior parte do tempo limitando-se a torturar as cordas da guitarra com um arco de violoncelo, Lopes dispensou-se de dar ao público o que tem de melhor e que contribuiria, decerto, para enriquecer a música e colocar-se ao mesmo nível da dupla suíça. No caso de Travassos, surpreendeu a postura discreta e quase unicamente de adensamento das construções de demorada laboração, tendo em conta a potencialidade dos seus dispositivos e o carácter interventivo que lhe conhecemos, por exemplo, da actividade com o trio Pão.
Os resultados foram ainda assim bastante interessantes, mas poderiam ter sido magníficos e a esse tipo de enlevo infelizmente nunca se chegou. Como respondeu a esposa da anedota à questão do seu cônjuge: «Foi bom, sim, querido. Temos de fazer outra vez, e melhor.» Aguardemos, para daqui a alguns quilómetros…