Barraca Fest
Sob o signo de Parker
A apresentação do livro de esboços que André Coelho fez da residência artística de Evan Parker, em 2012, com alguns dos participantes no minifestival agora organizado por Luís Vicente e Marcelo dos Reis acabou por ser o mote do evento. Nos três concertos da noite foram exemplarmente aplicados os princípios que então o saxofonista transmitiu…
O lançamento da “grafzine” “Evan Parker – Xjazz” (Chili Com Carne / Thisco), de André Coelho, no início da terceira edição do Barraca Fest acabou por ser o pano de fundo das três actuações que fizeram o cartaz deste ciclo organizado pelos músicos Luís Vicente e Marcelo dos Reis. Afinal, alguns dos que iam actuar, no passado dia 18 de Dezembro, participaram na residência artística do saxofonista britânico em Pedrogão Pequeno, começando pelos próprios organizadores e passando por Rodrigo Amado, Luís Lopes e Hugo Antunes, sendo que alguns outros se encontravam no bar do Teatro A Barraca, em Lisboa, para assistir aos concertos.
Esteve muito presente o espírito de conduta, em contexto de improvisação colectiva, que Parker transmitiu aos 17 intervenientes na acção que teve lugar em Agosto de 2012 e que Coelho registou em desenho, com a transcrição de frases do pioneiro da música improvisada europeia então proferidas. Por exemplo, dar espaço aos outros, suportar qualquer ideia individual que surgisse e demais princípios de convivência e interacção criativa que anunciam um novo modo de estar em sociedade.
Essas ideias foram colocadas em prática da melhor maneira pelo duo de Rodrigo Pinheiro e Marcelo dos Reis, pelo trio de José Bruno Parrinha, Ricardo Jacinto e Luís Lopes e pelo quarteto de Rodrigo Amado, Luís Vicente, Hugo Antunes e João Lencastre. O curioso é que, em se tratando de um evento dedicado à música livremente improvisada, o jazz foi uma constante em todas as intervenções, que não forçosamente o de formato free. Isso ficou logo patente na inédita colaboração de Pinheiro e dos Reis: em boa parte da prestação, os resultados pareciam até mais enquadráveis num universo como o da ECM do que em algo de carácter mais experimental.
Em mais do que um momento, os diálogos desenvolvidos remeteram este ouvidor não tanto para a parceria que Marc Copland registou com John Abercrombie, mas para o que poderia fazer se o seu interlocutor fosse alguém como Ralph Towner. Que longe estávamos tanto do “ecossistema” sonoro do Red Trio como do do Pedra Contida, as formações com que os dois instrumentistas são habitualmente identificados.
Ainda assim, Marcelo dos Reis foi particularmente disruptivo, volta e meia introduzindo situações (através, por exemplo, da utilização de um arco sobre as cordas da guitarra de caixa) que contradiziam a abordagem tonal por ambos escolhida, bem como o tipo de fraseio melódico e as construções harmónicas que se iam enovelando. Rodrigo Pinheiro servia-se dessas referências mais “off” ou mais extensivas para se colocar no outro lado do jogo de contrastes.
Um semelhante estabelecimento de paradoxos conduziu a performance seguinte. Nos saxofones alto e soprano, José Bruno Parrinha apresentou um discurso alinhado com a estética cool do jazz, todo feito de suavidade e detalhe, evidenciando o quanto o seu pessoal estilo deve a personalidades como Paul Desmond e Lee Konitz, e quando a intriga musical subia de intensidade era um pouco nos termos de um descendente dessa corrente que tal sucedia, Anthony Braxton. No outro extremo, o violoncelo de Ricardo Jacinto geria uma base textural muito livre, enquanto a guitarra eléctrica de Luís Lopes fazia a mediação entre os dois parâmetros, ora cobrindo Parrinha com acordes de jazz, ora adicionando uma camada extra ao trabalho abstraccionista de Jacinto.
Já o quarteto final da noite seguiu outro caminho. Na estreia pública da associação de Amado, Vicente, Antunes e Lencastre o que ouvimos foi um free bop mercuriano e fulgurante, com sucessões formais de solos por parte dos dois sopradores e, ocasionalmente, do contrabaixista. E se a bateria de João Lencastre nunca ficou a sós, o certo é que teve um papel particularmente relevante, por meio de imaginativos e galvanizantes padrões rítmicos. Sempre com um foco estrito, explorando pequenas derivações dos motivos, num tipo de estratégia deveras semelhante ao de Parrinha – não pude deixar de imaginar o que seria um dueto destes dois improvisadores que pertencem ao Open Mind Ensemble.
Hugo Antunes foi um soberbo exemplo de solidez e cola, mas os projectores estavam, naturalmente, virados para o que faria a inédita combinação do saxofonista tenor e do trompetista. Cada intervenção em primeiro plano de um queria suplantar a do anterior, incendiando a assistência. Depressa se verificaram as diferenças: Amado foi argumentativo e reflectido, e Vicente um solista emocional e até apaixonado, chegando a um visceral primarismo de expressão. Ou seja, complementaram-se magnificamente. O grupo ainda terá umas arestas a limar, mas promete grandiosos desfechos.
Se Evan Parker ali tivesse estado, teria certamente apreciado a maneira como a sua mensagem foi interiorizada pelos seus antigos discípulos e como foi partilhada pelos que não integraram as acções que tiveram lugar à beira do rio Zêzere. Três anos e meio depois dessa residência artística, os seus ensinamentos estão bem vivos na comunidade musical portuguesa. É bom saber.