Cícero Lee
Uma noite poética
O primeiro concerto de 2016 na SMUP teve em “drive”, entrega e entrosamento o que lhe faltou em risco, resultando em hora e meia de grande música. Na apresentação do novo disco “Those Who Stay” brilharam o baterista veterano José Salgueiro, o guitarrista Tiago Oliveira e o próprio líder contrabaixista. No início, ouviu-se a poesia de Al Berto…
Foi o primeiro concerto do ano na SMUP, numa iniciativa da associação Cultura no Muro. O contrabaixista e compositor Cícero Lee escolheu a Parede para apresentar o seu novo álbum, “Those Who Stay”, assinalando o arranque de uma nova temporada de eventos dedicados ao jazz com uma enchente de público. O quarteto formado com Tiago Oliveira em guitarra eléctrica, Carlos Garcia ao piano e o veterano José Salgueiro na bateria não só convenceu como entusiasmou com o seu jazz de cunho europeu, algo próximo da “estética ECM”, mas com evidente identidade portuguesa. Aliás, a inclusão do tema tradicional “Dorme Meu Menino” foi esclarecedora.
A actuação decorreu com a assistência reunida no palco, diante dos músicos, como vai sendo habitual na SMUP. Se o recurso costuma significar a ocorrência de uma situação musical intimista, o que desde logo surpreendeu com o grupo de Lee foi o enorme poder de som. Não havia PA, só a guitarra e o contrabaixo dispondo de reduzida amplificação, mas assim que os quatro músicos começaram a tocar em conjunto foi como se uma explosão de cores tivesse lugar. Os elementos eram de uma absoluta claridade e o que acontecia formava um todo sem nós ou atabalhoamentos.
Os motivos eram evidentes: Lee agia como um ritmista seguríssimo e Garcia era todo ele invenção harmónica, sustentando cada um à sua maneira o trabalho dos dois grandes trunfos deste projecto. Oliveira não podia funcionar mais como um pintor, adicionando pinceladas à tela geral até esta mudar por completo, e Salgueiro multiplicava-se em texturas, ora com uma discrição notável ora ganhando o primeiro plano, numa circunstância ou noutra mantendo as estruturas em taquicardia. Ou seja, as peças funcionavam como um relógio.
Talvez até demasiado, havendo na música de Cícero Lee algum artificial excesso de arrumação. Os desenvolvimentos não se afastam dos parâmetros escolhidos e estes repetem-se de tema para tema, sem assumir grandes riscos. Ainda assim, foram tais os níveis de entrega, entrosamento, intensidade e “drive” que esses factores depressa ficaram remetidos para segundo plano. Muito depressa se sentiu que este era um concerto especial, com solos improvisados de primeira água, e tanto os do guitarrista – um abercrombiano de personalidade própria – quanto do próprio líder.
A prestação foi longa, rondando a hora e meia, e andou-se aqui e ali à volta do mesmo, mas encheu de poesia – literalmente: o início ficou marcado pela leitura (por Joana Vaz) de um texto de Al Berto, sobre fundo de piano – uma noite que havia sido reivindicada pela chuva. O que se poderia desejar mais?