Susana Santos Silva / Torbjorn Zetterberg & Carlos “Zíngaro” + Fail Better!
Sexta-feira Santa
Em dia santo, música em estado de graça (ou quase). O conimbricense Salão Brazil recebeu dois concertos especiais, e não só porque se celebravam os 30 anos da Rádio Universidade de Coimbra. A dupla Susana Santos Silva / Torbjorn Zettergerg convidou Carlos “Zíngaro” a juntar-se a eles e os Fail Better! apresentaram a sua nova configuração com Albert Cirera e Marco Franco.
Mais uma Double Bill em Coimbra, mas esta duplamente especial, por incluir a comemoração do 30º aniversário da Rádio Universidade de Coimbra e porque os dois concertos agendados para o Salão Brazil traziam um par de novidades: as estreias do encontro do duo de Susana Santos Silva e Torbjorn Zetterberg com Carlos “Zíngaro” e de uma mudança de elenco no quinteto Fail Better!, com Albert Cirera e Marco Franco a tomarem os lugares antes ocupados por João Guimarães e João Pais Filipe. A proposta era aliciante, mas numa Sexta-Feira Santa, em plenas férias da Páscoa (estávamos, para todos os efeitos, numa cidade universitária), a sala apenas encheu pela metade. Há momentos históricos que a própria História deixa passar ao largo. A jazz.pt esteve, no entanto, lá, e aqui fica o registo para a posteridade.
A dupla entre a trompetista portuense Susana Santos Silva e o contrabaixista sueco Torbjorn Zetterbeg surgiu apenas enquanto tal no álbum “Almost Tomorrow” – a segunda edição do projecto, “If Nothing Else”, veio já com um convidado especial, o organista Hampus Lindwal. É essa a linha que os dois músicos pretendem explorar, associando um terceiro elemento às suas improvisações. Calhou agora a vez, em palco, a “Zíngaro” e ao seu violino, na perspectiva de que a colaboração possa ter seguimento e também, quem sabe, ficar gravada em disco. Pelo que se ouviu à beira do Mondego, funciona. E de que maneira…
Ao longo da prestação, foi óbvia a cumplicidade entre o contrabaixo e o trompete, mas “Zíngaro”, improvisador sábio e experiente, depressa entrou nas lógicas discursivas dos seus pares. E aquilo a que assistimos foi a um curiosíssimo jogo de equilíbrios. Com Zetterbeg a posicionar-se a meio (em cena e na música), assim dando profundidade a um espectro sonoro que, pelas características sonoras do trompete e do violino, ia para as notas altas, pareceu mesmo que estávamos num barco à vela, seguros ao mastro mas entregando-nos à ondulação da popa e da proa consoante passavam as vagas do mar por debaixo do casco.
Mesmo em contexto de livre-improvisação, Santos Silva evidencia a sua condição de instrumentista de jazz, ou seja, foi tonal e modal, desenvolvendo fraseados melódicos mais ou menos convencionais no âmbito jazzístico. “Zìngaro” aceitou a premissa, posicionando-se no mesmo plano, mas foi sub-repticiamente puxando a brasa para a sua sardinha: às tantas, da combinação entre o seu cordofone e o sopro, começaram a irromper belos e surpreendentes harmónicos, em choques de frequências de uma delicadeza, mas ao mesmo tempo de um tal impacto, que deixaram a assistência “pendurada”. É difícil num espaço em que existe um bar de serviço, mas o silêncio instalara-se: os presentes estavam suspensos da música que era tocada diante de si. Todos os músicos tiveram o seu momento individual, mas no que a solos diz respeito há que assinalar particularmente um par deles da parte de Zetterberg, que mais uma vez revelou ser um contrabaixista de mão-cheia. Estava ali, pois, uma fórmula que é decididamente de explorar, em mais concertos e em CD.
Dimensão mercuriana
Em vésperas do lançamento de um novo título, o seu segundo, ainda com a formação original, a prestação dos Fail Better! foi igualmente galvanizante. A identidade do grupo manteve-se com a inclusão do saxofonista catalão Albert Cirera e do baterista Marco Franco, tendo dependido ela, muito claramente, do seu guitarrista e líder, Marcelo dos Reis. Mas também ficaram perceptíveis algumas mudanças derivadas da substituição de dois elementos do quinteto: a música “sente-se” melhor em situações de maior intensidade, volume e rapidez e para aí se dirigiu com naturalidade, tomando por vezes uma configuração vizinha do rock Algo que poderíamos definir como um free jazz-rock de dimensão mercuriana, mas com espaço para o detalhe e as dinâmicas.
A nova formação precisará ainda de trabalhar a nível de entrosamento, em especial a forma como o trompetista Luís Vicente se relaciona com este outro contexto: esteve demasiado presente no concerto, chegando a ofuscar os préstimos dos saxofones tenor e soprano de Cirera. A proposta musical dos Fail Better! funciona em modo colectivo, e isso implica que cada um dê espaço aos outros. Os contributos, a nível inclusive de angularidade, de Cirera e Franco ficaram bem patentes e precisam de ser explorados – e aproveitados – no futuro.
O baterista ligou-se excelentemente ao contrabaixo de José Miguel Pereira, incentivando este a crescer na articulação e na sustentação das tramas, o que resultou numa das mais interessantes actuações do contrabaixista a que assistimos. O destaque vai, de qualquer modo, para Marcelo dos Reis: se este toca, regra geral, com uma seis-cordas acústica, a opção pela “solid body”, por vezes com o pedal de distorção no “on”, leva-o para desfechos assaz curiosos. O seu lado eléctrico tem algo de blues e Texas que deu gosto ouvir.
A performance dos Fail Better! aconteceu em homenagem a Afonso Bastos, amigo da banda, fotojornalista (algumas das suas imagens foram publicadas na jazz.pt) e antigo membro da equipa de produção do Salão Brazil e do Jazz ao Centro Clube, falecido no dia anterior. Foi como se ele também estivesse lá.