Rebelo / Mitzlaff / Franco + Torres / Faustino / Morão
Amêndoas de Páscoa
Foram doces, as amêndoas oferecidas pela SMUP em semana de Páscoa. Nuno Rebelo veio de Barcelona para improvisar “sem idiomas” com Ulrich Mitzlaff e Marco Franco, e Nuno Torres, Hernâni Faustino e Nuno Morão apresentaram um free à maneira dos anos 1970, mas com sabor a hoje.
Em semana de Páscoa, o já lendário sótão da SMUP alojou dois concertos de música improvisada com diferentes orientações e também diferentes frequências de público. Na quinta-feira 25 de Março foram muitos os que quiseram assistir a uma das poucas aparições em Portugal do guitarrista Nuno Rebelo, há seis anos radicado em Barcelona. E se muitos eram os que se lembravam do músico nos tempos do grupo de pop-rock Mler ife Dada, as motivações foram ainda, pelos comentários apanhados no ar, o que Rebelo – que vivia bem perto da Parede, em S. Domingos de Rana – fez nos domínios da improvisação e da música para bailado. Neste dia, reencontrava-se com um velho cúmplice nestas áreas, o baterista Marco Franco, tendo o violoncelista Ulrich Mitzlaff como terceiro vértice.
Foi muito longe de factores idiomáticos (os do rock, linguagem de origem do também antigo mentor do projecto Plopoplot Pot, ou do jazz e da música contemporânea, géneros familiares a, respectivamente, Marco Franco e Ulrich Mitlaff) que decorreu a actuação. O trio favoreceu a criação de texturas e para a manutenção destas recorreu, sobretudo, a abordagens percussivas. Também Rebelo e Mitzlaff foram como que bateristas, submetendo os seus instrumentos à acção de baquetas e das mãos, ora nas próprias cordas, ora, muitas vezes, nas madeiras dos seus instrumentos. Em ambos os casos, igualmente, foi recorrendo a preparações móveis, com vários objectos a serem retirados das mesas aos lados e depois devolvidos à procedência ou atirados ao chão depois de utilizados, que se construíram as intrigas. Muito raramente se ouviram fraseados lineares, pelo que as peças tocadas tiveram um carácter pontilhístico, nervoso e híper-agitado, com pequenos eventos sonoros a enovelarem-se nas construções. Só quando a música pedia um contraste este surgia, sob a forma de uns quantos acordes guitarrísticos ou de umas arcadas de violoncelo.
Se a aparência era a de algum caos, depressa se justificou a definição deste como um tipo de organização: as improvisações tinham uma forma global e dirigiam-se a um rumo. Quando os três músicos davam um tema por findo, em exactíssima simultaneidade, como se tudo estivesse escrito no papel, percebia-se bem o quanto o mesmo dependia de uma escuta mútua e o quanto todos os parâmetros eram controlados. Nessas alturas, Igor, o filho de Nuno Rebelo, abraçava-se ao pai, querendo chamar-lhe a atenção em Catalão ou em Castelhano: «No quiero mas concierto.» Infelizmente para ele, a restante assistência queria. Por causa da música que ia acontecendo e porque a voz única de Rebelo nos vai fazendo falta e esta, todos o sabiam, era uma oportunidade rara para a reencontrar.
Sábado de aleluia
No sábado 27 («sábado de aleluia», como gracejou Hernâni Faustino ao agradecer uma das entusiásticas ovações de uma plateia que, neste dia, já foi parca) foi a vez de se apresentar a formação em que o contrabaixista do Red Trio surge ao lado de Nuno Torres e Nuno Morão. Naquela que foi, acrescente-se, apenas a segunda prestação pública deste novo projecto. O mesmo vinha com a fama de fazer algo sem igual na cena portuguesa, com a particularidade de as intervenções dos dois Nunos diferir do que habitualmente desenvolvem em outras bandas. E assim foi: o saxofone alto de Torres revelou-se bastante distinto do que encontramos nas suas associações com Ernesto Rodrigues, em contexto reducionista, e a bateria de Morão não seguiu os mesmos parâmetros do seu trabalho experimental com Ricardo Jacinto. O que se ouviu foi o free jazz que o trio de Evan Parker com Buddy Guy e Paul Lytton e o Spontaneous Music Ensemble de John Stevens com Trevor Watts cunharam na década de 1970. Este trio é para a improv “old school” o que é o Ricardo Toscano Quarteto para o pós-bop: uma lufada de ar fresco com formatos da tradição.
Não houve solos nem acompanhamento, ou melhor, todos solaram e todos se acompanharam em concomitância e do início ao fim da actuação. De modo extremamente afirmativo, “in-your-face”, sem retiradas de campo nem contemplações. A música subia e descia lentamente e com toda a naturalidade, sem forçar nada, sem entrar em derivações e sem perder o norte, mas com uma agressividade e uma lógica muito próprias. E se a visceralidade de Faustino é já bem conhecida, Torres e Morão como que se revelaram neste contexto de entrega física, inventividade ao segundo e domínio técnico dos instrumentos. O primeiro não se limitou a quebrar ou contradizer ritmos, foi polirrítmico, nem caiu na ratoeira do “tricot” baterístico, e o segundo surpreendeu com o seu som agreste, rouco e cortante, carregado de história mas com ideias próprias. Temos conceito e este exige que fique registado em disco, para que haja amêndoas depois da Páscoa.