Blood Tree
Dia da verdade
O Dia das Mentiras foi o da estreia de um novo projecto de Francisco Andrade que envolve dois grandes do jazz nacional, Mário Delgado e João Lencastre. E foi bem verdadeira a surpresa causada, com energia rock e um saxofone tenor roufenho e explosivo que lembrou por vezes Gato Barbieri, estranhamente em vésperas do seu desaparecimento.
Não é todos os dias que se tem a oportunidade de assistir ao nascimento de um novo projecto. Blood Tree, o novo empreendimento do saxofonista Francisco Andrade com Mário Delgado na guitarra eléctrica e João Lencastre na bateria, estreou-se na SMUP, Parede, no Dia das Mentiras, 1 de Abril, mas pelo que se percebeu apenas por coincidência de datas – ficou claro que se tratava não de um falso grupo, daqueles que tocam uma vez e logo desaparecem, mas da apresentação pública de uma fórmula que foi laboriosamente estudada por Andrade para e com esta formação, pressupondo continuidade.
O primeiro tema tocado não nos preparou para o que viria a seguir. Funcionou como as clássicas primeiras faixas de muitos discos, abrindo com o material mais acessível para que o prossiga a audião. Se aí se descobriu logo a presença que o rock tem na música do trio, e se ficou claro que neste contexto o líder se permitia o tipo de solos que normalmente só lhe ouvimos em contexto de improvisação livre, a composição era em tudo o mais a do jazz “à portuguesa”, com refrões pronunciadamente melódicos e uma estruturação convencional. Depois, novas facetas foram emergindo, com a música e o grupo (bem fornecido por dois dos mais importantes músicos da cena nacional, Delgado e Lencastre) a crescerem e a soltarem-se cada vez mais.
Nas vésperas da morte de Leandro “Gato” Barbieri, Francisco Andrade tocou o seu sax tenor com um chapéu em tudo semelhante aos que usava o argentino nos seus concertos, e não terá sido por acaso. Era um símbolo bem presente que ali estava, em tributo a uma figura da história do jazz, e do saxofone neste género musical, que muito obviamente marcou o estilo do jovem instrumentista do Barreiro. O som rouco, agreste e não raro estridente de Andrade é-lhe devedor, bem como a toda a linhagem dos tenoristas possantes, de Coleman Hawkins a Peter Brotzmann, passando pelos incontornáveis Sonny Rollins, John Coltrane, Albert Ayler e Evan Parker.
Minuto a minuto o conceito da banda foi marcando território e este definiu-se como uma abordagem free do jazz-rock, ou seja, das osmoses entre jazz e rock propostas antes de ficar “institucionalizada” a tendência a que se chama fusão, e também repegadas depois de esta ter perdido a alma e a imaginação. O que tem, de resto, permitido que na actualidade estejam a ser desenvolvidas novas formas de conjugar as duas linguagens, contexto em que Blood Tree vem acrescentar as suas próprias perspectivas.
O papel de Mário Delgado foi fundamental para a caracterização dessa identidade, numa variação de planos que ora dependeu de um generoso uso da pedaleira, por meio de distorções e efeitos de harmonização, ora se apresentou mais limpo, focado no dedilhar da guitarra em alusões de “camp rock”. João Lencastre sustentou no ritmo a sua contribuição, se bem que sempre com construções fragmentárias ou quebradas. Francisco Andrade teve tanto momentos de contenção frásica saltou para situações de altíssima combustão, puxando a energia para cima e desprendendo a performance musical das coordenadas que a assistiam.
Se a maior parte das peças tocadas tinham sido escritas, se bem que em “open form”, houve lugar igualmente para um improviso integral com os mesmos pressupostos das composições e, no fim, para um jogo que consistia na ocupação de uma casa (a pauta era uma planta arquitectónica), com cada um dos três instrumentos a ocupar uma sala diferente ou a deslocar-se de uma para outra, apenas com um encontro a meio e no termo do percurso. Aqui, abriu-se um novo parâmetro, mais abstracto e experimental. Uma boa surpresa, que só podemos desejar que seja explorada, tenha mais concertos e resulte em discos. Atenção a Francisco Andrade, saxofonista que decerto dará ainda muito que falar…