MIA – Encontro de Música Improvisada de Atouguia da Baleia
Um tsunami de emoções
E lá se cumpriu mais uma edição do “congresso dos improvisadores”, a sétima, com cerca de 90 participantes de 14 países. Com festa, bons concertos e o envolvimento da população numa iniciativa única no mundo que abala quem lá vai e muda a sua maneira de entender a música e até a vida. A jazz.pt esteve lá, ouviu, viu e usufruiu da muito particular experiência que é ir ao MIA. Aqui está a reportagem…
Não há nada como o MIA, seja em Portugal como no resto do mundo. Só agora, quando o encontro de improvisadores promovido por Paulo Chagas e Fernando Simões em Atouguia da Baleia, vila do concelho de Peniche, vai na sua sétima edição, é que chegam notícias de que em Itália se está a tentar reproduzir o modelo. E qual é? Um festival dirigido não ao público, apesar de ter as portas abertas a este – com a população local a apoiar e a acarinhar o evento, seguindo o exemplo da junta de freguesia local e até dos escuteiros, que tomavam conta da banca dos discos e tratavam do “check in” –, mas para os próprios músicos. Neste ano, entre 5 e 8 de Maio, foram cerca de 90 os que participaram no evento, vindos de 14 países. A maior representação era, obviamente, portuguesa, mas a delegação italiana voltou a surgir em grande número e no Oeste ouviu-se falar também em Castelhano, Francês, Alemão, Inglês e Português com sotaque brasileiro. Objectivo: colocar os participantes em interacção intensiva, num contexto informal e de liberdade propiciador da exploração de possibilidades e da troca de experiências.
O mais importante aconteceu, mais uma vez, no palco e por via da criação conjunta de sons, mas o MIA é mais do que isso. É também o convívio dos músicos, o estabelecimento de contactos internacionais, o início de novas cumplicidades, a comunhão à mesa, a festa, tudo isto em ritmo acelerado (as actuações de fim-de-semana iniciam-se às três da tarde e só deixa de haver música quando o Sol se levanta no dia seguinte). Resiste-se ao cansaço como se pode e a emotividade vai ao rubro. Geram-se afectos, discute-se, ri-se, dança-se, brinca-se. Este ano, a maior celebração das afinidades descobertas no MIA veio das participantes femininas. Fizeram uma comemoração própria dentro do festejo geral. A madrugada de sábado para domingo pertenceu-lhes, tendo ganho um carácter simbólico a ocasião em que um grupo delas pegou na cantora italiana Marialuisa Capurso em peso e passeou-a assim suspensa dos braços pelo Armazém dos Tubos, o espaço criado para as “jam sessions”.
Projectos definidos
Depois de um primeiro concerto a solo, na noite de sexta-feira (6 de Maio), do flautista alemão Mark Alban Lotz, a que a jazz.pt não pôde assistir, a programação fixa do MIA 2016 continuou no início da tarde de sábado com a apresentação de um grupo na Sociedade Filarmónica de Atouguia da Baleia, especialmente formado para a circunstância e destinado a homenagear os grandes nomes da música que faleceram este ano, designadamente Pierre Boulez, Paul Bley, Gato Barbieri, David Bowie e Prince. Obituary se chamava, com as contribuições das cantoras Maria Radich e Marialuisa Capurso (esta com a voz processada electronicamente), do vibrafone de François Choiselat, do “dispositivo electroacústico” (um sintetizador modular ligado a um computador) de Jean-Marc Foussat e da bateria de Pedro Santo.
Se se suspeitava que o concerto incluísse passagens de temas de pelo menos alguns dos músicos desaparecidos, tal não ocorreu, e isso apesar de, em determinada altura, Radich ter atirado para o fluxo de sons o refrão de “Purple Rain”. A combinação das duas vozes funcionou bem, e melhor ainda a do vibrafone e da electrónica, com Foussat a disparar continuamente novos elementos. Ficou de imediato definido um padrão de inventividade que seria difícil de manter, mas teve correspondência posterior. De vários modos e com resultados distintos em termos de sonoridade, abordagem dos materiais, filiação de estilo.
E logo no mesmo dia pelo estreante colectivo Água Benta, na Igreja de S. José. Com recurso a algum instrumentário da tradição popular de várias regiões do mundo, como o shenai, a gaita-de-foles e a sanza do grego Ayis Kelpekis ou a guitarra portuguesa de M-PeX, o grupo teve também uma componente eléctrica e electrónica, em dois dos casos via guitarra e via trompete com Nuno Ribeiro, Rui Veiga e Luís Guerreiro, e outra mais próxima da jazzística, com o sax alto do polaco Aleksander Clov Baczkowski, o contrabaixo de João Madeira e a bateria de Mário Rua. E se momentos surgiram de proximidade daquilo a que se chama world music, outros entraram pelos domínios do noise, com uma atitude inesperadamente punk (vincada pela intervenção vocal de Guerreiro), tendo em conta até o espaço em que nos encontrávamos.
Foi o que também se verificou, na noite de sábado, com o P.R.E.C., na ocasião tendo o pianista Paulo Pimentel, o contrabaixista Miguel Falcão, o baterista Paulo Lopes e a percussionista japonesa Ryoko Imai a juntarem-se ao núcleo permanente do projecto, constituído por Paulo Chagas em flauta e saxofone alto, Fernando Simões em trombone e Paulo Duarte em guitarra eléctrica. Talvez tenha sido esta a meia hora mais jazz de todo o festival, com os dois sopros em diálogo aceso e desafiante, ainda que a música tocada tivesse refinamentos de câmara.
Ouviu-se então mais jazz, inclusive, do que com O Olho de Leonardo Pellegrim, saxofonista soprano brasileiro fixado em Aveiro que tem actividade precisamente nessa área. E isto porque o colectivo formado pelo próprio com os italianos Adriano Orrú e Carlo Mezzino, os portugueses Carlos Canão, João Braz Gonçalves e Laura Marques e a austríaca Mia Zabelka improvisou com a banda sonora electrónica dos vídeos do próprio Pellegrim projectados no fundo. A electrónica funcionou mesmo como a partitura daquilo que se executou ao vivo, com desfechos agradáveis mas algo tolhidos, talvez porque tenha pesado no comportamento dos músicos não tanto o áudio da muito interessante vídeo-arte (houve um efectivo entrosamento com o dito), mas a consciência de que se estava a acompanhar imagens.
A contribuição musicalmente menos interessante deste sétimo MIA foi a dos britânicos Breathing Space no final da tarde de domingo, se bem que esta tivesse intrigado na sua vertente performativa. Numa associação de Stephen Shiell, Hanna White, Melaina Barnes, Lou Barnell e Ian Thompson ao escultor Robert Worley, com o poeta e declamador Paulo Ramos a acrescentar em Português algumas partes do texto lido por Worley, contou-se (com bastante liberdade interpretativa dos factos conhecidos, diga-se de passagem) a história do último Neandertal – uma criança de 4 anos cujos restos foram encontrados na Península Ibérica. Tudo começou com uma deambulação dos artistas pela igreja de S. José, batendo uma na outra as pedras que levavam nas mãos. Depois, juntaram-se os objectos amplificados e o violoncelo de, respectivamente, Shiell e Thompson, com dispersos acrescentos orais da restante trupe, assim estabelecendo o fundo para a leitura de um texto por Worley. Este pecou por alguma má dicção, mas soube manter um tom de ladainha, com encantatória repetição de algumas passagens. Como se fosse uma prélica religiosa, tendo tudo que ver com o envolvimento arquitectónico.
Esta secção do cartaz do MIA terminou com o Quarteto Incrível, assim denominado não por presunção, mas porque a estreia da formação teve lugar na Incrível Almadense. Ainda que não se assuma como líder, o pianista e guitarrista Manuel Guimarães é o mentor deste projecto com Paulo Galão, João Madeira e Pedro Castello-Lopes. Tudo é atípico no mesmo, desde a combinação de instrumentos camerísticos (piano, clarinetes, contrabaixo) com percussões norte-africanas até à música em si mesma, que não teme entrar em território tonal – em Atouguia da Baleia surgiu, inclusive, como motivo uma melodia da música popular brasileira. Foi um concerto intenso e com exotismo q.b., com entusiástica adesão da plateia.
Ao calhas
Um lugar especial na programação do MIA continua a ser reservado às apresentações de grupos sorteados no auditório da Sociedade Filarmónica. Nas primeiras duas edições do festival tiravam-se, de um saco, papéis com os nomes dos participantes, mas o processo demorava muito tempo e atrasava o avanço das sessões. O sorteio faz-se desde 2012 por antecipação e assim voltou agora a acontecer, com os acertos apenas derivados de quem está ou não presente no momento. A iniciativa permite não só a constituição de grupos com músicos que não se conhecem e que nunca se ouviram, como a junção de diferentes gerações de instrumentistas com “backgrounds” distintos e desiguais níveis de domínio das técnicas da improvisação. Em contexto particularmente democrático, sem hierarquias de qualquer tipo, colocando um principiante ao lado de um veterano e alguém vindo do rock ou da clássica em assoiciação com outro do jazz ou da música experimental.
Os desfechos variam em termos de qualidade, assumindo o risco criado pela situação como um factor natural. O curioso, este ano, é pouco ter acontecido de menos bom nas tardes de sábado e domingo, o que não é um desfecho comum e explicou a crescente agitação da assistência, numericamente dominada por outros músicos que tinham estado antes ou iriam estar depois no mesmo palco. Claro que houve falsos fins, com “esticanços” que nada vieram acrescentar ao que já estava feito, e claro que houve quem se colocasse à frente dos outros, por umbiguismo ou porque não se soube gerir a maior amplificação de um instrumento em relação aos outros, mas esses são os dilemas próprios da música improvisada – o certo é que o nível começou logo alto pelas 15h00 de dia 7 e manteve-se quase sempre por cima no dia seguinte.
Em cada ano de MIA há uma, duas ou três figuras que se destacam nestes grupos sorteados, com confirmação no que depois fazem nas “jam sessions” madrugadoras do Armazém dos Tubos, situado uns metros mais abaixo. Na memória do MIA estão as actuações em anos anteriores de dois dos grandes improvisadores do nosso país, a cantora e bailarina Maria Radich e o saxofonista Francisco Andrade, bem como de músicos de outras paragens como o brasileiro, radicado em Barcelona, Luiz Rocha, ou o clarinetista britânico Noel Taylor. Em 2016, as maiores revelações foram Aleksander Baczkowski, um jovem saxofonista que com certeza irá dar muito que falar no futuro, e Ryoko Imai, agora instalada em Portugal depois de ter vivido alguns anos na Holanda.
Os portugueses em primeiro plano neste ano foram o baterista Pedro Santo e o guitarrista (membro dos Signs of the Silhouette) Jorge Nuno, um pela sua solidez rítmica e pelo trabalho textural, o outro pelas construções de efeito psicadélico. Uns quantos mais estiveram particularmente bem nesta passagem pelo MIA. Jean-Marc Foussat, um consagrado da improvisação francesa, enriqueceu as formações em sorteio e depois os “ensembles” com a sua electrónica. Também Carlo Mascolo, um sobredotado trombonista de Itália, e a igualmente italiana Silvia Cordá, pianista de mão cheia e imaginação solta. De realçar ainda as prestações do muito performativo Eduardo Sérgio, de uma cada vez mais afirmativa e desenvolta Maria do Mar, da neo-zelandesa, radicada na Catalunha, Sarah Claman, e de Mia Zabelka, Mestre André, Miguel Mira e Alvaro Rosso, bem como dos dois mentores do evento, Paulo Chagas (a brilhar no oboé) e Fernando Simões.
Fechando as noites
Simões foi o mais feliz dos condutores dos seis Ensembles MIA com os quais, três a três, fecharam as sessões do fim-de-semana na Filarmónica. Pela eficácia da sua direcção e pelos elementos de surpresa que trouxe. Quando “expulsou” um dos músicos (Mestre André) por este ter falhado uma indicação, gerou-se na sala alguma incomodidade, mas a repetição do mesmo procedimento com todos os demais, até ficar apenas o baterista Paulo Lopes a tocar, fez com que todos percebêssemos que havia uma encenação e esta tinha um objectivo específico: desconstruir a música pela desconstrução da orquestra. Entretanto, os músicos de sopro que tinham saído agruparam-se no fundo da sala e aí deram uma conclusão épica à “brincadeira”, depois da derradeira descida da baqueta sobre o “snare” – só essa parte, como soubemos mais tarde, não tinha sido intencionada pelo maestro. Foi o delírio geral.
Os demais condutores, François Choiselat, Mark Alban Lotz, Mia Zabelka, Noel Taylor e Silvia Cordá, escolheram outras fórmulas. Choiselat utilizou a sinalética do Sound Painting de Walter Thompson para uma performance muito dinâmica e escorrida, talvez porque parte dos intervenientes estivera no “workshop” sobre esse mesmo processo na quinta-feira anterior e o vibrafonista francês já utilizara os mesmos recursos na edição de 2015 do MIA. Taylor aplicou os gestualismos de “Butch” Morris, ainda que de forma mais cerrada e que levou alguns elementos do seu “ensemble” a queixarem-se do excesso de controlo. Lotz, Zabelka e Cordá foram muito directos e muito simples, procurando jogar com a alargada panóplia de timbres, o primeiro chegando mesmo a colocar-se de lado para deixar que as situações se desenvolvessem por si mesmas, mas também introduzindo estruturantes apontamentos de naipes.
Já as “jams” correram menos bem, fosse pela gratuitidade e pelo desinteresse de muitas das realizações como pela excessiva presença dos mesmos músicos em cena, tirando o lugar a outros. Ainda assim alguns momentos mágicos ocorreram. Primeiro um grupo apenas integrado por cordas de arco com Maria do Mar, Sarah Claman, Miguel Mira e João Madeira, e imediatamente depois uma fabulosa explosão de “groove” com Pedro Santo, Alvaro Rosso, João Desmarques, Carlo Mascolo e Fernando Simões. De registar ainda o estonteante ataque de Ryoko Imai a uns baldes de tinta para pintar paredes convertidos em instrumentos de percussão e, com outro registo (passava já das 05h00 da manhã), uma magnífica Marialuisa Capurso a cantar “a capela” temas tradicionais do Sul de Itália e da Grécia.
Para o ano haverá mais e, pelo que nos foi adiantado, com outros moldes, correspondendo à necessidade de refrescamento que a iniciativa já pede, volvidos que são sete anos. Esta edição já não contou com o apoio da Câmara Municipal de Peniche, o qual, de qualquer modo, vinha diminuindo gradualmente. Os políticos continuam a não conseguir perceber e dar o devido enquadramento às dinâmicas que surgem na sociedade civil, deixando-se ultrapassar pelos factos. Mais um exemplo de cegueira num país incapaz de firmar uma política cultural inteligente. Melhor assim, com os músicos a definirem eles mesmos a sua actividade, de forma imaginativa e que tanto impacto tem criado no País e no resto do planeta. Como se atesta pela cada vez maior quantidade de músicos, nacionais e estrangeiros, a irem à Atouguia da Baleia para experimentar algo de único. Um tsunami de emoções.