SpringOn
Vivo e recomendado
A Casa da Música promoveu mais uma edição do festival dedicado às novas tendências do jazz europeu. Os grupos portugueses tocaram sempre nas segundas partes das “double bills”, em atitude de afirmação da música nacional, e foram muito variadas as propostas, demonstrando a riqueza do que se vai fazendo com o rótulo “jazz”. Saldo mais do que positivo.
O programa do festival SpringOn! propunha um auspicioso fim-de-semana. A frescura criativa e a oportunidade para ouvir novas tendências e solistas que poderão marcar o jazz europeu dos próximos anos eram motivos mais do que suficientes para irmos lá espreitar.
No primeiro dia, a Sala 2 da Casa da Música encheu-se de público para ver e ouvir os luxemburgueses Pol Belardi’s Force e os portugueses The Rite of Trio. Com David Fettmann no saxofone alto, Jérôme Klein no piano, Niels Engel na bateria e Pol Belardi no baixo eléctrico, o quarteto Pol Belardi’s Force abriu as hostilidades com composições pouco ousadas e nada empolgantes. O seu jazz convencional muito bem tocado não surpreendeu. Os temas, reminiscentes de um certo jazz americano do final dos anos 1980 e início dos 90 (a fazer lembrar Grover Washington Jr. ou a Chick Corea Electric Band), revisitaram as Américas e os seus ritmos, mas faltou a alma negra ou latina. O seu som, apesar de limpo e doce, não chegou a ser a frescura improvisada prometida no programa. Afloraram várias das influências nele mencionadas (pop e hip-hop) sempre sem largarem a segurança da mimese de um jazz “higiénico”. Este concerto terá, certamente, agradado a muitos, mas só o solo do baterista conseguiu romper a monotonia e arrancar palmas e gritos efusivos do público. O próprio Pol Belardi, numa das suas eloquentes apresentações, brincou com o facto atribuindo-lhe o estatuto de uma música à parte.
Se no primeiro concerto tivemos o “aluno exemplar e bem comportado”, no segundo da noite tivemos o “aluno mais popular e irreverente”. O concerto do trio portuense composto por André Bastos Silva na guitarra, Filipe Louro no contrabaixo e Pedro Melo Alves na bateria começou com a encenação de um ventríloquo com um pato (na cabeça) a perguntar ao baterista se gostava de jazz. E o trio respondeu, desta vez, a sério.
O alerta no programa para um jazz “bem longe do romantismo de lareira” e “incomum, incerto e desconfortável” não podia ser mais acertado. O arrojo e a complexidade das composições assim o atestaram. O trio percorreu vários estilos sem concessões, do rock mais experimental ao progressivo, do psicadelismo ao bebop. Até ao silêncio foram e voltaram! A repetição em toada hipnótica e os ritmos em compassos compostos ou as arritmias foram enredando o público, por vezes polvilhado com algum humor refinado. A sucessão vertiginosa de estilos sugeria algo estruturalmente próximo de uns Naked City, igualmente rigoroso ainda que com diferentes contornos. O rosnar cru do contrabaixo, o vigor da percussão e os efeitos na guitarra foram a cereja no topo. Mais do que uma exibição de virtuosismo, foi uma prova de que, quando se vibra com o que se faz, essa energia passa para o público… e isso é espectáculo!
Um fiorde assombroso
Para o segundo dia do festival, os suecos (com um canadiano e um australiano à mistura) Circadia e os portugueses Slow is Possible foram os eleitos. Lamentavelmente, não me foi possível assistir à segunda parte, embora a curiosidade fosse grande. Com David Stackenas na guitarra acústica, Kim Myhr na guitarra clássica, Joe Williamson no contrabaixo e Tony Buck na bateria, os Circadia enfiaram a audiência num fiorde assombroso. O resultado da interacção entre os vários elementos parecia um (ou vários) espanta-espíritos ao vento. Camadas de outros sons tomavam o primeiro plano para logo desaparecerem no fundo de uma densa neblina. Imagine-se uma floresta frondosa e os padrões derivados do agitar dos galhos e das folhas das árvores. Assim era o quadro apresentado pelo quarteto.
As guitarras revezavam-se no dedilhar de acordes e no arranhar das cordas num ritmo constante. O contrabaixo zumbia harmónicos e não se cingia ao espectro mais grave do registo do instrumento. A bateria pouco marcava os tempos de forma assertiva, antes segurava o balanço e acompanhava o ondular da massa sonora produzida. O primeiro tema durou cerca de 30 minutos (o segundo e último, outro tanto), durante os quais a improvisação e a exploração tímbrica, dinâmica e de texturas foram o ponto forte. A atmosfera onírica que criaram abriu, certamente, o caminho para o que veio a seguir…
Pronto? Sim
O festival encerrou com os franceses Chromb! e com os portugueses Hitchpop. Os primeiros demonstraram desde o início grande descontracção. Ouvia-se a comunicação entre os elementos do grupo através dos microfones de voz de cada um, como se de um ensaio se tratasse. «Pronto?», «Sim», «1, 2, 3, …» e assim, sucessivamente. A música de Léo Dumont - bateria e voz -, Camille Durieux - teclas, sintetizador e voz -, Lucas Hercberg - baixo, efeitos e voz -, e Antoine Mermet - saxofone, voz, sintetizador e efeitos-, é estrondosa. A comparação com os 5uu’s (ou com os Magma) será mais justa, até pelas harmonias vocais, mas a abordagem destes jovens acaba por ser mais moderna. O território escolhido foi o rock progressivo, é certo, mas as roupagens são bastante actuais, indo beber à música electrónica e ao metal mais extremo.
A abundância de sons sintetizados e de efeitos sonoros, assim como o som poderoso do baixo eléctrico distorcido, acompanhado pela marcação forte da bateria, envolviam a audiência num misto que ia “da pop ao ruído mais caótico”. A execução dos temas foi irrepreensível, o que denota muitas horas de rodagem apesar da tenra idade.
Depois desta grande agitação vieram os Hitchpop. O registo mais suave e lento do trio português destoava com o que os antecedera. Confesso que só ao terceiro ou quarto tema comecei a imergir no doce manto, talvez pela brevidade dos mesmos. À medida que cresciam, a envolvência adensava-se. A simplicidade das composições dava aso à improvisação. Enquanto Miguel Ramos segurava o ritmo nos dois baixos eléctricos - alternando entre registos mais médios ou graves -, Marcos Cavaleiro explorava de modo exímio a bateria e João Guimarães preenchia-nos com doces solos de saxofone alto e acordes etéreos de sintetizador. O suspense também teve os seus momentos ou não tivesse o trio um sugestivo nome, alusivo ao mestre do género.
Algumas notas finais: um louvor para a elevadíssima eficiência da equipa técnica da Casa da Música, sem a qual a magia não teria acontecido; outro louvor para a abrangência da programação, capaz de agradar a gregos e a troianos e pela audácia de porem os músicos portugueses a tocar depois dos estrangeiros, sem servilismo e com propriedade. Resta-nos esperar que o muito público que passou pela Casa da Música responda a edições futuras com o mesmo entusiasmo, que o jazz continua vivo e recomenda-se!