Moers Festival
Na encruzilhada
A jazz.pt assistiu àquele que é um dos mais importantes festivais de jazz do mundo, este ano com duas representações portuguesas, a de Susana Santos Silva, em duo com Kaja Draksler, e a do LUME de Marco Barroso. Aí se ouviu de tudo um pouco, desde revisitações da tradição até propostas que vão para além dos confinamentos do jazz. No fim, o seu programador, Reiner Michalke, apresentou a demissão. Qual será o futuro deste festival com quase meio século de vida? Não se sabe…
Nascido no ano de 1972, o Moers Festival foi pioneiro na Europa e ao longo da sua história tem apresentado cartazes eclécticos com ênfase na música improvisada contemporânea. Conseguindo sobreviver ao longo de quase cinco décadas, o festival transformou-se em ícone cultural da Renânia do Norte-Vestefália (Nordrhein-Westfalen), o estado mais populoso da Alemanha, que inclui cidades como Düsseldorf, Colónia e Dortmund. Começou no meio urbano, junto ao castelo de Moers, passou depois para uma grande tenda de circo até que, em 2014, ganhou direito a um espaço próprio, um pavilhão com boas condições técnicas e capacidade para 2000 espectadores. Fundado por Burkhard Hennen, que dirigiu o festival até 2005, quando foi substituído por Reiner Michalke, manteve em 2016 uma programação que demonstra a riqueza e a diversidade do jazz da actualidade.
Esta edição de 2016 decorreu entre os dias 13 e 16 de Maio, aproveitando o fim-de-semana prolongado do feriado de Pentecostes, e foi marcada por uma forte presença feminina, pouco habitual em cartazes de jazz e música improvisada - nas palavras do director, não terá sido propositada, apenas casual. Outra curiosidade foi a presença de dois projectos com músicos portugueses: o duo da trompetista Susana Santos Silva com a pianista Kaja Draksler e o LUME – Lisbon Underground Music Ensemble (foto acima), de Marco Barroso.
Sexta-feira 13
O evento arrancou na sexta-feira 13 ao início da noite, com um projecto especial de Carolin Pook. Violinista e compositora de origem alemã, há vários anos a residir em Nova Iorque, Pook está actualmente em residência artística na cidade de Moers. Aquela que é designada especificamente de “improviser in residence” tem promovido concertos e “workshops” junto da comunidade local e, para o festival, apresentou “Pezzettino 8”. Este junta um octeto de violinistas (apenas mulheres, o que nas palavras da artista terá sido apenas uma coincidência) numa original mescla de composição e improvisação dirigida. Cruzando a “condução” de Butch Morris com uma base de composição, este projecto apresenta uma música que cruza a dimensão etérea dos cordofones com a brusquidão percussiva. Brincando com o caos controlado, o espectáculo foi marcado pela fisicalidade dos gestos de Pook, que ainda passou para a bateria num final catártico.
Seguiu-se a actuação de Sam Amidon, cantor de matriz folk, uma adição de última hora ao cartaz, talvez o projecto mais afastado da matriz jazz/improvisação que caracteriza o programa. Sozinho em palco, apenas com voz e guitarra, Amidon interpretou canções folk sem mácula. Pelo meio, fez algumas brincadeiras com a sua guitarra, designadamente citações jazz à maneira de Wes Montgomery, como que a justificar a sua presença no cartaz.
Menos interessante terá sido a actuação de Hildur Gudnadóttirv & Robert Lowe. Sem as teclas de Jóhann Jóhannsson (presença cancelada à última hora, passando o trio para um duo), a dupla Gudnadóttirv & Lowe interpretou a banda sonora em tempo real do filme “End of Summer”. Violoncelo, sons pré-gravados (“field recordings”) e efeitos electrónicos forneceram uma massa sonora dolente e globalmente pouco interessante. Fora do programa oficial, mas mais apelativa, foi a actuação a solo de Gudnadóttirv na manhã seguinte, uma “morning session” numa igreja belíssima, cenário ideal para a absorção daquela música delicada feita de violoncelo e efeitos.
A actuação favorita do público estaria guardada para mais tarde. A americana No BS! Brass Band confirmou-se com a mais vibrante banda do primeiro dia de festival, com a sua música altamente enérgica, cruzando a tradição de New Orleans com a modernidade, pela adição de elementos funk e hip-hop. Trombones dinâmicos, trompetes fogosos, uma tuba no papel de baixo e até um saxofone (isolado) geralmente discreto, mas extraordinário quando chamado a solar – além de uma bateria forte. A revisão de “Thriller”, de Michael Jackson, já no “encore”, foi um momento de enorme celebração.
Entusiasmo cubano
O segundo dia, sábado, abriu com concertos ao início da tarde. À 15h00 actuou a Subway Jazz Orchestra, uma “big band” clássica de jazz, competente mas pouco chamativa. A orquestra, formada em 2013 por um grupo de músicos que se reúne no clube de jazz Subway (de Colónia), interpretou no festival a suite “State of Mind”, da autoria do próprio director da formação, Tobias Wember. Pouco dinâmica e sem vigor nos solos, o principal pecado seria a falta de fluidez daquela música, especialmente nas transições entre os solos e os momentos de grupo (o “tutti”), com tudo muito estruturado e separado. Apenas nos momentos de intervenção colectiva o grupo fez notar alguma pujança.
Foi ao meio da tarde de sábado, às 16h30, que a dupla formada por Kaja Draksler e Susana Santos Silva subiu ao palco. Apresentando o disco “This Love”, editado pela lusa Clean Feed, o duo trabalhou temas longos, com uma ampla vertente exploratória. Piano e trompete exploravam sons, lançavam ideias, chegavam a pontos de identificação e cruzavam elementos, até que, finalmente, iam ao encontro da melodia no final – “Hymn to the Unknown” foi o primeiro tema. Ao segundo – “This Love”, como o título do disco -, Susana passou para o fliscórnio, primeiro deixando espaço para o piano da eslovena Kaja solar, lançando depois o seu som quente por cima das teclas do piano.
Para fechar a prestação, deram uma nova vida a “Geringonça” – composição incluída no disco “Impermanence” de Santos Silva, na altura em que surgiu sem relação com a alcunha popularizada do Governo português. Nesse tema final Kaja explorou o interior do piano, Susana regressou ao trompete, desta vez servindo-se também de surdina. Piano e trompete comunicavam e, mais do que nas peças anteriores, encontravam-se em uníssonos. Santos Silva e Draksler demonstraram uma excelente interacção, naquela que terá sido, provavelmente, a proposta mais experimental do programa. Talvez por isso, a recepção do público foi morna.
Seguiram-se Maja Osojnik & Patrick Wurzwallner. Apresentando o disco “Let Them Grow”, esta outra dupla juntou voz, electrónica e bateria. Apresentando uma espécie de canção escavacada com atitude punk, Maja declamava/cantava sobre um fundo de electrónica manipulada em tempo real, com uma bateria atenta e reactiva a dialogar. Musicalmente soou pouco interessante, mas o público respondeu com entusiamo. Em contraste com a simplicidade de processos anterior, entrou em cena o guitarrista americano Jeremy Flower, que apresentou ao vivo o seu disco “The Real Me”, editado já neste ano de 2016. Além dos músicos da própria banda, a actuação contou ainda com vários elementos da EOS Chamber Orchestra. Flower revelou um rock muito estruturado e com espírito aberto, apoiado por músicos de orquestra de câmara, liderado pela voz da versátil Carla Kihlstedt (também no violino). Esta música, que vai revelando inúmeras camadas, acabou por soar demasiado cerebral e, apesar da prestação de Kihlstedt, faltou-lhe dinâmica e sentimento.
A proposta vencedora da noite de sábado ocorreu logo às 21h30. O trio de Harold López Nussa conquistou o público desde o primeiro momento, com o seu jazz de raiz afro-cubana. A música de ritmo quente foi trabalhada com altíssima qualidade instrumental e uma excelente dinâmica de grupo. Ao leme do trio, Harold López-Nussa desenhava no piano as cornucópias melódicas, apoiado por uma secção rítmica vibrante: Yasser Morejon Pino no contrabaixo e Ruy Adrian Lopez Nussa (irmão do pianista) na bateria. Com base na tradição, manteve-se uma agitação quase sempre acelerada, por vezes vertiginosa. Não faltou o tema “Guajira”, que inclui uma viciante sequência de palmas no início e foi a marca sonora da edição 2016 do Moers Festival. O entusiasmo da assistência, no final, foi completamente justificado.
Para acabar a noite chegou uma proposta curiosa: Harriet Tubman com a convidada Cassandra Wilson. O trio existe desde 1998 e junta Brandon Ross (guitarra, banjo), Melvin Gibbs (baixo eléctrico) e J.T. Lewis (bateria). Com a veterana Cassandra Wilson gravaram o disco “Black Sun” e foi esse trabalho conjunto que foi apresentado ao vivo. E se o concerto anterior tinha injectado energia, esta última actuação deixou a audiência do festival em estado letárgico. A banda estava em boa forma, mas Cassandra mostrou, desde o instante em que entrou no palco, que não se encontrava em condições físicas e psicológicas para actuar. A voz era uma sombra daquilo que já nos mostrou e a cantora insistiu ainda em tocar guitarra – de forma desajeitada e atabalhoada -, o que só perturbou a música. Pelo meio houve uma revisão de Beatles, “Tomorrow Never Knows”, e ainda o tema tradicional afro-americano “I'll Overcome Someday”. Nenhum foi memorável. O grupo mostrou-se profissional, mas a prestação de Wilson foi penosa.
“Loops” e uma raposa
Os concertos de domingo iniciaram-se com o Zapptet do contrabaixista Tim Isfort. Este apresentava uma formação pouco comum, com quatro saxofones ao leme: Hayden Chisholm, Silke Eberhard, Jan Klare e Angelika Niescier. A estes juntaram-se a guitarra de Thorsten Töpp, a bateria de Michael Vatcher e o contrabaixo do líder e compositor. Após um primeiro tema enérgico, seguiu-se uma composição mais contida, explorando materiais subtis. O septeto soube fazer render as possibilidades instrumentais, alternando entre várias configurações, uníssonos, solos, duos, etc., consciente da amplitude pós-moderna do jazz contemporâneo. De regresso a um formato mais clássico, o “ensemble” abordou uma partitura de matriz parkeriana, com toda a energia do bebop.
Foi depois a vez de The Liz, que apresentou ao vivo o trabalho “Book of Birds”. Este trio junta Liz Allbee (trompete amplificado), Liz Kosack (teclados, com a particularidade de estar mascarada de raposa) e Korhan “Liz” Erel (computador e electrónicas). Repartiram-se entre a exploração sónica do trompete (bom trabalho de Albee), a manipulação electrónica e a leitura de uma história. Embora o aspecto musical não tenha sido fascinante, este espectáculo revelou uma dimensão cénica muito interessante. Se há muitos trios de piano clássico, os seguintes Medusa Beats não escolheram uma abordagem convencional. O grupo junta músicos europeus de três nacionalidades diferentes: o francês Benoit Delbecq (piano), o sueco Petter Eldh (contrabaixo) e o alemão Jonas Burgwinkel (baixo eléctrico). Delbecq, Eldh e Burgwinkel trabalham uma música original, que reflecte a modernidade, incluindo uns pozinhos de electrónica e muita imaginação.
Oriundo de Cuba, David Virelles apresentou no Moers o seu mais recente trabalho, “Mboko” (edição ECM). A acompanhar o pianista estavam os excelentes Thomas Morgan (contrabaixo) e Eric McPherson (bateria), juntando-se-lhes ainda o cubano Román Díaz (percussão e voz). O piano torrencial de Virelles era a base da música, suportado por uma secção rítmica possante. O quarteto interpretou um longo tema sem pausas, assente na matriz afro-cubana, com espaço para intervenções vocais de Román Díaz. O resultado foi globalmente feliz.
Uma das prestações que mais expectativas geravam era a dos Warped Dreamer, um supergrupo formado por Arve Henriksen (trompete, electrónica), Stian Westerhus (guitarra, electrónica), Jozef Dumoulin (piano eléctrico Fender Rhodes, electrónica) e Teun Verbruggen (bateria, electrónica). O quarteto cruza uma música que por vezes se aproxima do psych-rock e do jazz eléctrico pós-Miles Davis, com laivos “noise” e momentos de uma pureza ambiental, etérea, quase religiosa. A música do quarteto vive de crescendos e explosões, mas também do contraste com a toada ambiental, sempre surpreendendo.
Seguiram-se os Dawn of Midi, que no seu formato é um clássico trio de piano, contrabaixo e bateria. Vimo-los já este ano em Lisboa (no Teatro Maria Matos, a 19 de Fevereiro), pelo que este concerto acabou por não constituir uma surpresa. É, de qualquer modo, sempre fascinante assistir a uma actuação de Amino Belyamani (piano), Aakaash Israni (contrabaixo) e Qasim Naqvi (bateria). O trio desenvolve uma irrepreensível música de dança acústica: padrões rítmicos que se repetem de forma obsessiva, com os músicos a reproduzirem sempre os mesmos movimentos, numa precisão robótica. Assume-se a forma do techno minimal, com a novidade de se basear em som acústico e de ser trabalhado de forma orgânica. Vemos aqui o inverso do jazz, a ausência da improvisação, do factor humano. Poderá não ser aqui que vamos encontrar o jazz do futuro, mas temos de reconhecer que a música praticada pelos Dawn of Midi é incrivelmente original e até revolucionária.
Na conclusão da terceira noite de concertos, apresentaram-se os americanos Moon Hooch, trio de Mike Wilbur (saxofones), Wenzl McGowen (saxofones) e James Muschler (bateria) oriundo de Brooklyn. Apesar da configuração instrumental, não se trata de jazz, mas antes de “party music”: uma bateria com rítmicas fixas, dois saxofones que se complementam, lançando rugidos de forma sincronizada, uma base rítmica electrónica. Tudo em “loop”, uma e outra vez, sempre às voltas, porque afinal se trata de música de dança. O aspecto visual excessivo complementa essa ideia de uma música festiva e próxima, inclusive, do registo foleiro, já que se trata de uma espécie de jazz "eurodance". Passado um pouco, torna-se mesmo irritante: o “beat” é quase sempre o mesmo, as variações são mínimas. Para quem goste de música de dança mais abstracta, esta proposta pode soar demasiado repetitiva. É verdade que partilham semelhanças com os Dawn of Midi: também praticam música dançável a partir da instrumentação acústica típica do jazz. Mas não têm a mesma precisão geométrica, a mesma perspectiva “científica”. A sua vertente é puramente de divertimento. Se os Dawn of Midi praticam o minimalismo de uma IDM (Intelligent Dance Music), os Moon Hooch dedicam-se a um techno-pop mais gorduroso.
Durante a performance muita gente se levantou para dançar e, atenção, o público deste festival tem uma média de idade avançada (muitos das pessoas que ali estavam acompanham o festival desde sempre). Esta fórmula consegue, pois, ter um apelo popular, como poucas vezes o jazz consegue. Começaram então a surgir questões: passará por aqui a salvação do jazz? Será este o futuro do jazz? Não sabemos, mas gostamos quando a música nos deixa a pensar, quando lança dúvidas e nos atira para fora da nossa zona de conforto. Poucos o conseguem fazer.
Na segunda-feira, dia 16, actuou o LUME, original “big band” que combina música criativa e jazz, com um novo disco acabado de editar pela Clean Feed. Neste concerto foi apresentada a sua mais recente contratação, o imparável saxofonista Ricardo Toscano. O Moers Festival terminou, depois, com as actuações de Hauschka & Kosminen, Amok Amor (quarteto de Peter Evans, Wanja Slavin, Petter Eldh e Christian Lillinger) e Becca Stevens & Jacob Collier, a que já não pudemos assistir.
Na conferência de imprensa de encerramento, o director Reiner Michalke apresentou a sua demissão. O motivo passa pelo corte de verbas e pela dificuldade de interligação com as autoridades locais. A decisão, surpreendente, deixa no ar muita apreensão quanto ao futuro do festival, restando a esperança de que este possa continuar a promover a música criativa, tal como conseguiu fazer ao longo de quase meio século.