The Heat Death
Como numa história de Ballard
Quando o grupo escandinavo começou a tocar, no jardim de uma vivenda da Parede, levantou-se uma súbita ventania. No fim, nenhuma folha de árvore mexia. No propósito de contrariarem o enfraquecimento da energia termodinâmica anunciado pela ciência, os cinco músicos proporcionaram-nos uma experiência de magia. Foi estranho, muito estranho. E muito bom também.
Não sei se os motivos tiveram que ver com questões de termodinâmica similares às que dão nome a este quinteto da Escandinávia, mas algo de estranho ocorreu durante o concerto do mesmo no jardim da Casa Irene e Reynaldo dos Santos, na Parede, mesmo junto ao mar, na passada sexta-feira, dia 21. Os Heat Death tocaram em mais uma sessão da Combat Jazz Series, ciclo produzido conjuntamente pela Clean Feed e pela SMUP (antes tinham estado em Lisboa, para uma actuação na Culturgest), e… Bom, assim que Kjetil Moster, Martin Kuchen, Mats Aleklint, Ola Hoyer e Dag Erik Knedal Andersen puseram a boca no trombone (ou a modos que, pois trombonista havia só um), uma brava e fria ventania se levantou. E quando, no final, deixaram de tocar, nem uma folha de árvore mexia.
Os vermelhos e laranjas da ténue iluminação do concerto e as muitas sombras do espaço em que nos encontrávamos criaram um ambiente bizarro que mais acentuou o desvario climático que naquela hora de música se experienciou, como se a anunciada resistência à “morte do calor” por parte do grupo fosse da teoria científica que defende que, um dia desses, o universo deixará de produzir suficiente energia para poder suster algum tipo de vida, para chegar a algo de bem mais metafísico e misterioso. Como amiúdes vezes o contrabaixista e o baterista, seguindo o que já lhes é característico, introduziram ritmos africanos nas tramas, não seria de espantar que esvoaçassem por ali uns tantos espíritos ancestrais do Continente-Mãe. Afinal, tratava-se de um ritual de exorcização dos males da natureza. O certo é que a natureza reagiu – durante o dia a temperatura tinha rondado os 30 graus, baixando para muito menos de metade à noite –, e não estava contente.
Estas circunstâncias acabaram por dar um maior impacto à música e ninguém nos poderia, naquele momento, convencer de que não foi a própria música que os provocou. A intensidade da sessão, a magia que se desprendeu das improvisações, o quase tribalismo dos jogos desenvolvidos entre os dois saxofones, o trombone e a secção rítmica mexeram com a assistência. É difícil descrever o que aconteceu musicalmente, mas aqui fica uma tentativa por analogia… Imaginem o cruzamento do “Ascension” de John Coltrane, com tudo o que o disco tem de caos organizado, com o que fazia a Chris McGregor’s Brotherhood of Breath, juntando músicos sul-africanos e britânicos. Conseguem? Ficam umas kwelas e maskandas zulu em modo free jazz, certo? Agora ponham por debaixo dos sopros o “beat” repetitivo e hipnótico dos Can e de outras bandas do krautrock dos anos 1970. Pois foi isso que se ouviu…
E se a rítmica tendia a ser fixa e obsessiva, a “front line” de seis instrumentos (saxofones tenor, alto e sopranino, flauta, clarinete e trombone) espiralava em volta, disparando sons para todos os lados, mas, ainda assim, formando uma inesperada e surpreendente unidade. Eram como ondas a chegarem à praia, compactas em cada vaga, mas surgindo mais alta aqui do que ali, com água espessa num lado e espuma no outro, e ora puxando a corrente para si, ora desfazendo-se na areia. Podíamos até desenvolver um exercício de audição: ou tomávamos os muitos elementos como um todo, abrangendo a integralidade da massa sonora, ora atentávamos nas partes, nos pormenores, abstraindo-nos do resto. Houve de tudo neste plano: três solos simultâneos ou solos individuais com os outros dois sopradores a suportarem-nos com pequenos apontamentos de orquestração. O curioso é que ambas as situações faziam pleno sentido e mesmo quando se estruturava o resultado era orgânico.
O nome The Heat Death mais parece o de uma banda de metal, mas nenhuma desse domínio conseguiria ter o impacto desta que pratica um jazz totalmente improvisado. De resto, com total propósito e ciente disso mesmo: Kjetil Moster, um dos saxofonistas, é um regular colaborador do grupo de metal psicadélico Motorpsycho. Não sei se o que aconteceu na Parede foi mais do que uma simples indução de estados alterados de consciência por via da música, a melhor e menos nociva das drogas, mas a verdade é que o vento rugiu, em luta contra o ritual sonoro daqueles cinco, e depois calou-se, vencido, abrindo um vácuo na atmosfera. Até os pássaros se calaram. Houve uns longos segundos de silêncio antes de as palmas soarem no final – tínhamos vivido algo de especial, algo de semelhante a uma história do escritor de ficção científica J.G. Ballard.