Imaxinasons
Um recomeço chamado Lucía
A estreia de Lucía Martínez na direcção artística do festival de jazz de Vigo fez-se da melhor maneira. Aki Takase, FronTTon, Nani García Cinematojazzia e Frank Gratkowski estiveram entre o melhor a que a jazz.pt assistiu na Galiza…
A edição de 2016 do Imaxinasons viveu-se de maneira diferente do habitual e tudo isso porque foi a primeira em que o festival de jazz de Vigo, na Galiza, teve a direcção artística de Lucía Martínez. A estreia desta baterista e percussionista na programação do evento instalou um ambiente singular nos vários espaços que foram sendo ocupados com concertos. Por todo o lado se sentiam a expectativa e a excitação.
Vários factores conduziram a que assim fosse. O primeiro advém da circunstância de Lucía ser uma filha da cidade, tendo agora sido chamada a dar um contributo para a mesma depois de nove anos de residência em Berlim. O segundo factor é a sua idade (31 anos), representando a igualmente compositora uma nova geração do jazz e da improvisação em Espanha e na Europa. E o terceiro motivo do geral contentamento está a ser o facto de se tratar de uma mulher, uma mulher que está a ganhar projecção internacional na música e se sucede a dois veteranos homens do jazz galego, Baldo Martínez e Nani Garcia. Para a parte feminina da já fidelizada assistência do Imaxinasons era, de resto, particularmente evidente o agrado pelo convite a esta jovem que tem tocado com figuras da primeira linha como Agustí Fernández e Kalle Kalima.
A primeira parte do festival, que foi de quinta-feira 1 de Julho ao domingo dia 3 e a que a jazz.pt não pôde assistir, teve como cabeça-de-cartaz o lendário Hermeto Pascoal, no ano em que faz 80 de vida. A sua passagem por Vigo, na abertura de uma digressão pela Europa que não inclui Portugal no seu trajecto, entusiasmou a população local e o concerto esgotou com uma semana de antecedência. Pelos comentários ouvidos, deixaram também boas impressões o Alberto Vilas Cuarteto e o Julia Hulsmann Quartet, com elogios especiais para o trompetista deste último, Tom Arthurs. Foram, no entanto, os alemães Masaa que mais impressionaram, e tanto pelo seu jazz introspectivo como pelo vocalista de origem árabe, Rabih Lahoud, que tem a particularidade de improvisar as palavras que canta tanto quanto os sons.
Bombo a brilhar e melodia de telemóvel
Na semana seguinte a personalidade maior do programa seria a pianista japonesa Aki Takase, que se apresentou a 8 de Julho, mas muito se ouviu até chegar a sua vez. Na segunda-feira 4 iniciou-se no Marco o bloco “experimental” de actuações que é um dos pilares mais característicos do festival e que Lucía Martínez faz questão de manter. Fez-se nesse primeiro dia com a prata-da-casa, neste caso o percussionista viguense Roberto Oliveira. Não era um concerto de jazz nem pretendia ser: Oliveira tem feito o seu percurso no domínio da música erudita contemporânea e em especial da electroacústica, a sua inclusão servindo para aclarar as muitas influências que o jazz actual tem recebido dessa área.
Foi um espectáculo “intermedia”, com projecção de vídeos que ampliavam o efeito dramático das peças interpretadas – recurso fundamental, aliás, para reforçar o efeito de uma que tinha como tema a morte. No final, as imagens deram lugar à iluminação, com um enorme bombo a brilhar no palco (graças a um projector colocado no seu interior) enquanto dele saíam desde os mais subtis estalidos até ribombares de trovoada. Um virtuoso, sobretudo no manejo do vibrafone, Oliveira esteve em permanente diálogo com a electrónica gravada (nos próprios vídeos) e agradou.
A prestação seguinte, também a solo, coube ao alemão Frank Gratkowski, com o seu projecto Artikulationen. Se este é conhecido pelos processamentos digitais em tempo real do seu saxofone alto, nesta circunstância tocou em versão totalmente acústica, e inclusive fazendo uso da reverberação natural da sala. Um dos mais aplaudidos sopradores europeus, com dedicações especiais aos clarinetes baixo e contrabaixo, a sua contribuição decorreu no registo exploratório que lhe é habitual, procurando iludir os próprios limites mecânicos e lexicais dos seus instrumentos.
Teve, no entanto, a particularidade de se colocar num plano sobretudo tonal e modal que nos remetia para o património saxofonístico do jazz. Aliás, e como que visando tornar muito clara a sua proveniência, o que Gratkowski tocou no “encore” foi nada mais, nada menos do que um tema dos tempos do bebop. O único composto da sessão, pois até aí tudo o que se ouvira havia sido improvisado, uns motivos conduzindo a outros em “stream of consciousness”. Um telemóvel tocou entre o público e o que o músico fez foi incorporar a melodia da chamada no seu fraseado, aproveitando de forma criativa (e com humor) um acontecimento acidental.
Memória/cinema
Ainda no Marco, seguiram-se a 6 de Julho os FronTTon de Pelayo Arrizabalaga, Yosvani Quintero e Dominik Dolega, muito curioso trio com instrumentistas de três nacionalidades, espanhola, cubana e polaca. Foi um dos melhores concertos desta edição do festival, combinando os gira-discos sempre estruturantes de Arrizabalaga (dos anos 1960, sem recurso a mesa de mistura ou outros dispositivos de tratamento sonoro) ao saxofone tenor e ao clarinete baixo de Quintero e à percussão (com destaque para a manipulação de pedras) de Dolega.
A música era, mais uma vez, integralmente improvisada, mas o grupo utiliza uma estratégia de orientação que faz com que tudo pareça pormenorizadamente previsto: o que foi tocado antes é recuperado e aplicado no que vem a seguir, num constante exercício de memória que permite apertar o foco das abordagens e gerir o fluxo de sons numa sequencialidade em que só há desvios se estes tiverem intenção. De acrescentar que Pelayo Arrizabalaga foi um dos protagonistas deste Imaxinasons, surgindo igualmente em cartaz com a muitíssimo bem urdida exposição “Transbordo Espacial – Partituras Gráficas”, que ainda ficará uns meses na Casa das Artes de Vigo. Uma das suas notações gráficas, desenrolada no solo, foi interpretada por quatro estudantes de música. Para ser tocada era preciso caminhar sobre ela, seguindo os percursos indicados.
No dia 7 passou-se para o auditório do município, a fim de assistir à estreia absoluta da Cinematojazzia de Nani García. O pianista de jazz e compositor de bandas sonoras para cinema e televisão de A Coruña juntou os dois lados da sua actividade num projecto que enriquece cada uma das suas vertentes com a outra, obtendo desfechos surpreendentes. A partir de duas convenções musicais estabelecidas conseguiu o inesperado – não a submissão de uma à outra, mas um jogo que tema a tema se renovava.
Acompanhado pelo seu trio (com os habituais Simon García e Miguel Cabana) e por um quarteto de cordas formado por músicos de Havana, foi poético e fez abanar as cabeças, pelo caminho prestando homenagem ao homem do jazz que mais brilhantemente uniu esses dois vectores, Keith Jarrett. Os melhores momentos aconteceram com o “duo” entre Cabana, de mãos a dançarem directamente sobre as peles da bateria, e as cordas, bem como, no apoteótico final, com os solos cruzados dos quatro cordofones numa ginga cubana. A assistência saltou das cadeiras, entusiasmada, naquela que foi outra das noites mais memoráveis do certame.
Bolas de pingue-pongue
O serão continuou ao ar livre, na rua pedonal por detrás do Marco, com o portuense Pedro Neves Trio, a primeira presença portuguesa, entre duas, no Imaxinasons deste ano. A proposta feita por Neves com Miguel Ângelo e Leandro Leonet pecou por se colar demasiado ao modelo do Brad Mehldau Trio, mas revelou-se competente e resultou nuns quantos picos de beleza. Paisagístico, por vezes mesmo aéreo, o jazz deste combo tem a mais-valia de equilibrar o seu lirismo com um “groove” incansável, emprestando à geral toada europeísta um cunho que somente podia ser do Sul.
Até que se chegou à tão esperada intervenção solitária de Aki Takase. O programa anunciava a re-interpretação do seu disco “My Ellington”, mas se foi por composições de Duke Ellington que a performance efectivamente começou, a pianista residente em Berlim incluiu também no alinhamento partituras de Thelonious Monk e temas seus. Ou seja, ziguezagueou entre os pólos extremados da mais profunda tradição do jazz (foi buscar o som “jungle” do jovem Ellington) e do vanguardismo (com bolas de pingue-pongue a saltarem de dentro do piano, numa divertida encenação dos abstraccionismos que iam ocorrendo).
A prestação teve um carácter retro-futurista que agradou a gregos e a troianos, pelo que se pode concluir dos dois regressos ao palco exigidos pelo público. O vigor das execuções e a entrega levada ao máximo eram tudo menos uma indicação do precário estado de saúde em que a companheira de Alexander von Schlippenbach se encontra.
Novamente na Rúa Londres, o final da noite foi totalmente diferente. Apresentou-se o quinteto dinamarquês Girls in Airports, com uma exótica combinação de jazz com folclore escandinavo (e não só), rock, “club music”, ambientalismo electrónico e rítmica africana, cheia de “reverb”, ultra-amplificada e concebida ao jeito dos investimentos noruegueses de Manfred Eicher para a ECM. Destacaram-se os dois saxofonistas, Martin Stender e Mars Greve, e o irrequieto teclista Matthias Holm.
Tlintlintlim
A mais uma “double bill” se assistiu no último dia do Imaxinasons, 9 de Julho. No Auditório do Concelho esteve ao cair do sol uma Orquestra Jazz de Matosinhos centrada na escrita dos seus dois directores, Pedro Guedes e Carlos Azevedo, com o primeiro como maestro permanente e o segundo sentado ao piano. A sessão foi desigual, alternando o excelente com desenlaces bastante menos interessantes e um ou outro equívoco. Muito bem esteve a “big band” na suite “Peça com Peças” de Guedes, sendo igualmente de registar o duo do contrabaixista Demian Cabaud com Azevedo – algo que não se espera quando estão 17 pessoas no palco.
Já difícil foi perceber a lógica interna da secção free (magnificamente tocada por Mário Santos no saxofone tenor, o que serviu como compensação) metida a ferros num arranjo orquestral híper-formalista e datado. Uma coisa é trabalhar com contrastes e outra bem diferente querer conciliar o que não encaixa. Pena, ainda, que João Guimarães apenas tenha solado uma vez, e com o seu âmbito de acção demasiado espartilhado, e que a presença de um trompetista como Gileno Santana fosse esquecida pela dupla responsável da OJM, que não o chamou a tomar a dianteira. Infeliz ainda foi o desacerto entre os próprios Guedes e Azevedo na transição de um “chorus” pianístico para o “tutti”.
Depois, atrás do Marco, mais jazz galego, e com honras de fecho. Subiu ao palco o trio de um dos veteranos desta música na região autónoma de Espanha situada acima do Minho, Kin García. Se este esteve igual a si próprio, desdobrando-se em requintes construtivos e segurando o leme ao contrabaixo, o pianista Jacobo de Miguel confirmou tudo o que de bom se vai falando dele e acrescentou alguma coisa mais em termos de brilhantismo. Já Noli Torres não esteve tão bem. A música executada pretendia-se intimista, pausada, suave e com espaços e respirações, mas tal não justificava que a bateria desaparecesse, ou melhor, que Torres não interagisse com os demais nem suportasse as tramas, remetendo-se para um tlintlintlim de vassouras passivo, repetitivo e inócuo. Uma pena, porque a fórmula era cativante.
A ver (ouvir) o que Lucía Martínez nos oferecerá em 2017. A sua estreia no presente ano, essa, tem nota 5 e muito deixa a esperar do próximo Imaxinasons…