O Carro de Fogo de Sei Miguel
Como as ondas do mar
O trompetista que é uma das mais importantes figuras da música criativa portuguesa foi à SMUP apresentar a quarta versão daquele que talvez seja o seu mais intrigante projecto de sempre. Aqui fica um testemunho dessa noite muito especial em que a música se construía por vagas, uma onda dando lugar a outra.
Qualquer aparição pública de Sei Miguel é um acontecimento, mas quando se trata deste projecto em particular – o Carro de Fogo –, as três versões anteriores levadas para o palco atraíram um público ainda mais curioso. Os motivos são conjecturais, mas poderão estar na personalização que o nome escolhido implica, passando a ideia de que, logo para o trompetista, se trata de algo muito particular, e também no facto de incluir instrumentistas em destaque na cena nacional. Depois de um processo de gravações destinadas a uma futura edição em disco, o quarto Carro de Fogo de Sei Miguel foi apresentado na SMUP (mais exactamente no sótão da SMUP, espaço requerido pelo músico devido à sua particular acústica), no passado dia 20 de Julho, com algumas figuras que não é habitual vermos a ele associadas.
Foram na Parede, e serão no CD que há-de vir, os casos de André Gonçalves, que se movimenta nos circuitos da música electrónica e electroacústica, neste contexto a cargo dos órgãos (virtuais, tocados por meio de um computador), de Bruno Silva, conhecido pela “sampling music” que desenvolve como Ondness, e que toca guitarra neste grupo, e do baterista Raphael Soares, membro dos ritualísticos Alforjs e ex-Sunflare, banda de psych-rock de boa memória, aqui como percussionista. Os outros intervenientes são “habitués” nas formações de Sei Miguel: Fala Mariam no trombone, Nuno Torres no saxofone alto (um parceiro habitual, também, de Ernesto Rodrigues), Pedro Lourenço no baixo (o mesmo dos Bruxas/Cobras) e Luís Desirat na minimalística bateria, com um trajecto que passou tanto por um duo com Rodrigo Amado como por Anamar, os Tina & the Top Ten de João Paulo Feliciano e os Ena Pá 2000.
Desde sempre que Sei Miguel vem incorporando nos seus “ensembles” colaboradores vindos dos mais diversos percursos, entre a improvisação, a música experimental, o rock e mais, mas este Carro de Fogo firma-se muito explicitamente na linhagem do jazz. O trabalho desenvolvido por Mariam e Torres nos sopros em tudo correspondeu na SMUP, aliás, ao orquestralismo jazzístico convencional, com comentários “on-the-side” em contraponto e função de coro. O concerto começou como todos os de Sei Miguel: com este sozinho no trompete de bolso, soltando poucas notas entre grandes espaços de silêncio, gradualmente com a redução destes à medida que as frases ganhavam mais conteúdo. Depois, os restantes instrumentos foram-se associando. Estava dado o mote para a estruturação da música: cada instrumento era a parte de um todo, um elemento individual numa construção colectiva. Se momentos havia em que um sobressaía, só o próprio líder mantinha o protagonismo (se bem que muitas vezes se retirando ou colocando-se ao serviço do “tutti”).
Os fraseados mais ou menos curtos ora eram repetidos, ora sofriam pequenas variações, regra geral por extensão de componentes, numa lógica que dava às tramas um movimento semelhante ao das ondas do mar que se desfazem na praia. Vagas sobrepunham-se a outras vagas, não sem que as primeiras entretanto se dissipassem, e se algumas ganhavam maiores intensidade e densidade no seu efeito conjunto (a actuação terminou, de resto, com um clímax), o certo é que eram contrapostas por passagens de uma grande transparência, permitindo-nos ouvir cada um dos seus elementos, uma maraca a agitar-se aqui, um acorde de guitarra ali. A base era habitualmente proporcionada pelo órgão, embora evitando o já tão estereotipado uso de “drones”. A contribuição de Gonçalves não só ampliava o espectro cromático do octeto como reforçava o carácter vagamente litúrgico e cerimonial desta tão longa quanto lenta (e em constante estado de metamorfose) composição de Sei Miguel. Alturas houve, aliás, em que o que ouvíamos nos remetia para uma Alice Coltrane ou um Pharoah Sanders.
No final, a muita gente que se amontoava no sótão deu largas ao seu entusiasmo. Sei Miguel continua a ser uma das mais intrigantes e cativantes personalidades da nossa música criativa e a saber reunir-se dos melhores intérpretes para tornar os seus muito pessoais conceitos numa realidade. Esta foi uma noite especial que nos faz ansiar pelo disco igualmente especial que está por vir…