Jazz em Agosto
Ano Zorn
Numa edição especial dedicada à música de John Zorn, o festival da Gulbenkian incluiu este ano um total de 22 concertos, entre três em que o saxofonista (e organista) tocou e outros em que os grupos convidados interpretaram a sua música. Apenas quatro saíram deste figurino, ainda que dois deles – os dos participantes portugueses – sob a sua esfera de influência. A música ora foi de primeira, ora resultou em desaire, como aqui se conta.
O Jazz em Agosto continua a ser dos poucos festivais do País que procuram apresentar o jazz actual, para ouvintes mais exigentes e que não se contentam com as mistelas dos cul-jázzes e afins. No mês dos incêndios, dele esperamos faísca, chama, e que se consuma com provocação. Este ano, os fogos estavam controlados e a música surgiu por vezes ignífuga. Só um ou dois focos deram mais trabalho aos soldados das letras. O orçamento do Jazz em Agosto deste ano pareceu – para quem está de fora e sem dados reais – ter duplicado, tal foi a quantidade de concertos, de músicos americanos e de estrelas (sendo certo que muitos tocaram três e quatro vezes em grupos diferentes). A carta branca dada a John Zorn revelou um músico que neste momento da sua carreira tem pouca coisa nova para oferecer e está preso num colete de forças: estagnado numa música que sobrevive através da mudanças de cenário, usa o mesmo texto para todas as peças e muda os actores. “Masada”, “Book of Angels”, “Bagatelles”, sempre a mesma fórmula.
Conheço a obra do saxofonista nova-iorquino suficientemente bem para reconhecer que a homenagem da Gulbenkian é merecida. Zorn é um dos músicos cimeiros da actualidade, devendo ser visto como um compositor / saxofonista e não como um “jazzman”, mas nesta fase da sua carreira, se nos restringirmos ao jazz, não haveria música suficiente para fazer um festival. Fez bem a organização em – como tem sido hábito – flexibilizar as fronteiras do género para incluir as músicas tangenciais que deram mais interesse e animação ao festival. O concerto de Robert Dick e, principalmente, o de Barbara Hanningan são excelentes exemplos.
Zorn é ainda uma estrela idolatrada por muito público que apareceu em grande quantidade e aplaudiu, entusiasmado, todas as apresentações. Um público que não questiona o professado radicalismo judeu e a colectivização forçada de tantos músicos criativos a um só conceito: a klezmerização do jazz está cada vez mais confinada em si mesma, aos grupos que forma, produz, contrata e grava. Zorn parece, neste sentido, um músico solitário na promoção de uma música (e de uma ideologia?) que nasce e se esgota em si e através de si. Tal como no passado com Dave Douglas e Joey Baron, por exemplo, o saxofonista continua a ser capaz de juntar e promover músicos da nova geração e o festival deste ano serviu ainda para ficarmos a conhecer melhor Matt Hollenberg, Tomas Fujiwara ou Kenny Grohowski, que são certamente nomes a seguir no futuro.
Entre os já consagrados o destaque vai para a pianista Kris Davis e para Kenny Wollesen no vibrafone (mais do que na bateria). Anualmente, o JeA procura melhorar e é de elogiar o esforço permanente da organização no desenvolvimento de soluções para receber o público da melhor maneira. Entre melhorias que resultaram em piorias e outras que se afirmaram positivamente, destacou-se na edição de 2018 a abertura do bar contíguo ao Auditório 2 até à uma da manhã, como forma de compensar o fecho da Gôndola, o histórico restaurante da Av. da Berna onde toda a gente ia beber um copo depois dos concertos. Também o uso de um QR Code que dava acesso à folha de sala de cada concerto, uma inovação que passou muito despercebida, mas que reduziu o desperdício de papel, uma boa ideia ecológica.
The Stone na Av. de Berna
No dia 27 de Julho, às 21:30, aconteceram duas coisas importantes: o eclipse da lua e o concerto de John Zorn na Gulbenkian. Dias antes tinha chegado a notícia de que o baterista Milford Graves não tocaria, por uma imprevista condição de saúde; o concerto perdia assim mais de metade do interesse, porque se Zorn é muito bom a improvisar, Thurston Moore é francamente desinteressante. O saxofonista improvisou uma solução para o que poderia muito facilmente vir a ser uma noite penosa (como o disco dos dois, aliás): na impossibilidade do trio, a inauguração mudou para uma “Stone Improv Night”, ou seja, uma réplica do ambiente que se vive no The Stone em Nova Iorque, espaço de que é director de programação.
Tocaram John Zorn e Thurston Moore, mas também as guitarras eléctricas de Mary Halvorson e Matt Hollenberg, os contrabaixos de Drew Gress e Greg Cohen e a bateria de Tomas Fujiwara. Zorn definiu uma série de grupos para cada tema: os músicos esperavam atrás dos instrumentos e os grupos iam saindo e entrando, proporcionando sons e abordagens diferentes. O primeiro duo foi de Zorn e Moore e aconteceu o que se esperava: o primeiro a tocar a sua linguagem e Moore a fazer distorção contínua na guitarra eléctrica. Previsível, sem novidade e com pouca capacidade como improvisador (limita-se à imitação), o antigo guitarrista dos Sonic Youth não tinha preparação para estar naquele palco. Seguiu-se o trio de Halvorson com os dois contrabaixistas. A música continuou fraca. Depois tocou novamente Moore com Hollenberg e voltou a distorção em contínuo e a pouca capacidade do “rocker”.
O trio seguinte juntou Zorn com Greg Cohen e com a bateria de Tomas Fujiwara e o nível de qualidade disparou como um pacote de açúcar num hipertenso. Grande baterista, excelentes solos dos três e excelente a música conjunta. A tensão normalizou, mas já não voltou a descer às amarguras em que andara: tocaram Gress / Halvorson / Moore / Hollenberg, depois Gress / Halvorson / Gress / Fujiwara (os dois últimos são membros do grupo da primeira, e por isso o entendimento é muito bom), regressaram Zorn e Moore e tocaram todos no final e no “encore”. O público foi (e assim se manteve, como viríamos a descobrir) muito generoso no aplauso, ainda que tivesse sido uma noite apenas suficiente. Neste capítulo, é importante referir que, ao contrário do que muitas vezes acontece no concerto inaugural, não saíram os 30 espectadores que habitualmente vêm ao engano. Quer isto dizer que está a resultar o esforço gigantesco que a organização tem feito para o público perceber que o que se ouve no Anfiteatro ao Ar Livre é jazz, e por conseguinte sem relação alguma com as delícias do mar de outros festivais.
Com muito prazer
A segunda noite propôs uma “double bill”, dois concertos com dois grupos, e os 1000 lugares do anfiteatro ao ar livre voltaram a ser poucos. A música era semelhante na sua génese, um jazz klezmerizado, no esforço que tem vindo a ser desenvolvido pelo homenageado nos últimos 20 anos para impor uma “nova música judaica”. A Mary Halvorson que chegou ao palco foi muito diferente da que conhecemos nos seus projectos musicais ou mesmo da que tem uma ligação a Anthony Braxton: tocou melodias simples, dentro de um fato melódico e rítmico apertado. Uma espécie de hard bop em que a soul e o funk foram substituídos pelo klezmer. Foi bom ouvir este grupo ao vivo, pois ficámos a conhecer melhor o segundo guitarrista, Miles Okazaki, e Tomas Fujiwara na bateria. O quarteto toca com elegância uma música de embalar que por vezes quase soa a fado. Halvorson reduziu o uso do “whammy” e do pedal de volume ao mínimo porque os temas não davam muito espaço de manobra.
Logo de seguida, numa mudança de lugares rapidíssima, instalou-se em palco o Masada, o histórico quarteto de Zorn. Em Abril de 1997 o grupo veio a Portugal para dois concertos, um no Convento do Beato e no dia seguinte em Matosinhos, e foram ouvidos com a sofreguidão de quem vivia num país que procurava coisas novas. Na altura, a música viajava mais devagar: primeiro chegaram os discos pela AnAnAnA de Paulo Somsen e depois veio finalmente o grupo, numa iniciativa do actual programador do Jazz em Agosto, Rui Neves. Hoje os Masada viajam em sentido contrário: Zorn e Douglas são estrelas planetárias, Greg Cohen e Joey Baron têm carreiras notáveis, a banda é conhecidíssima.
Assim, o que há 20 anos era mais uma desbrida zorniana, continua hoje a ouvir-se com prazer: Zorn e Douglas expunham os temas alternando entre o uníssono e o paralelo. A ligação entre ambos continua muito boa, apesar das carreiras separadas e de ter parecido que Douglas veio à Gulbenkian em serviços mínimos. A música teve um nível de qualidade elevadíssimo. Joey Baron é, ao vivo, sempre melhor do que em estúdio: enorme fluência e bom-gosto, num controlo absoluto da bateria. Cohen esteve sólido (na altura em que os Masada se formaram era ainda um risco, pois tinha apenas no currículo ser o baixista de Tom Waits): manteve a estrutura coesa, mesmo quando Zorn e Douglas íam para terrenos mais abstractos. Duzentos temas de Masada são uma pena pesada para qualquer mortal, mas cinco ou seis ouvem-se ainda com muito prazer.
Numa loja de brinquedos
O primeiro domingo do festival chegou com um andamento preguiçoso. O senhor do saxofone lá vinha com as suas calças de guerra e o dia era dele. Às seis da tarde, um filme / documentário de Mathieu Amalric sobre o “special”, em estreia absoluta – a montagem terminara apenas 10 dias antes. Uma hora e meia depois o Grande Auditório recebeu o projecto Jumalattaret, que junta a soprano Barbara Hannigan ao pianista Stephen Gosling. Tratava-se canções de idolatria, compostas a partir da leitura da epopeia nacionalista finlandesa, o “Kalevala”. Este livro do século XIX voltou a ser popular recentemente (edição portuguesa pela D. Quixote). O autor, Elias Lönnrot, reuniu uma extensa colecção de canções da tradição oral das populações finlandesas em 1835 e conseguiu uni-las numa narrativa épica coerente. Mais uma vez, os bilhetes esgotaram e a audiência ouviu em silêncio as canções. Seguro o piano, que tocou limpo e preparado com a impressionante voz e a actuação da excelente intérprete canadiana de ópera. A escrita de Zorn junta dois mundos: se para voz usa processos da música contemporânea, soando a Kagel e a Berio, o piano toca melodias doces, bem-educadas, que soam a “lieds” do século XIX. Foi um concerto muito bonito, que mostrou mais uma das facetas do compositor e que o público aplaudiu justificadamente de pé.
À noite entrámos novamente no Grande Auditório com o órgão de tubos instalado no palco, iluminado de azul. O efeito cénico era fortíssimo. Para o meio daquela estrutura enorme entrou Zorn e, ao seu lado, sentada numa pequena mesa, Ikue Mori manipulava o “software” de um computador. O órgão, com aquela dimensão majestosa, com tubos enormes, ocupava quase todo o fundo da sala. Como todos os órgãos, alia à sua escala monumental um som que imaginamos a elevar-se e ligar-nos ao céu. Com Zorn no comando do aparelho, o sentido foi inverso: num uso descontrolado de agudos agressivos, graves profundos e enormes massas sonoras contínuas, transformou-se num instrumento feérico.... durante 15 minutos. O saxofonista domina bem o ar no saxofone, mas não tem música para 45 minutos soprados através dos enormes tubos. Depois do primeiro quarto de hora em que todos os pedais, botões e teclados foram testados, com o encanto de quem solta uma criança numa loja de brinquedos, a música finou-se. Falecida a novidade, o concerto transformou-se numa repetição penosa, com momentos burlescos como quando Zorn põs as mãos no ar enquanto martelava a pedaleira com os pés.
Ao contrário de mim, a quem o concerto soou a um momento lúdico desinteressante (na verdade não estava sozinho, alguns poucos abandonaram a sala perante o deslustre daquele momento), a maioria dos sentados que quase esgotavam os 1400 lugares só se levantaram para ovacionar de pé o final do concerto, com o entusiasmo histérico de quem acabou de receber a remodelação de uma assoalhada pelos “querido mudei a casa”. Zorn e Mori voltaram para mais cinco minutos do mesmo (faria sentido?), que não tive mais paciência para ouvir. A presença do computador foi muito importante, pois serviu para preencher as transições entre processos e compensar as repetições. Mori tem um sentido muito apurado no uso da electrónica, com sons interessantes que não se misturavam com o órgão, mas também não contrastavam excessivamente, e criou uma ligação interessante entre a dimensão épica do outro instrumento e uma chuva de pequenos elementos no seu.
Temas com temas dentro
A segunda-feira chegou com uma noite de primeira. O festival não abrandou e para arrebitar o quente fim de tarde, vinham aí três concertos três. Começámos no Auditório 2 com The Rite of Trio. O grupo do Porto é uma boa surpresa do jazz nacional e tem na bateria e na composição os seus pontos de maior interesse. Tocou excelentemente, seguindo uma linha que já conhecíamos de outros concertos. Gostávamos de ter ouvido novidades, mas percebemos que, para a maior parte do público presente, o grupo era desconhecido, e por isso a opção segura pode não ter sido má. Sempre encantador, Pedro Melo Alves acaba por ser a referência central. Apesar de a música do trio ser distante da de Zorn, nota-se uma filiação com os Naked City, no facto de fazer temas com muitos fragmentos dentro. O nome do grupo coloca-nos entre Stravinsky (“The Rite of Spring”) e Brad Mehldau (“The Art of the Trio”), mas a música tem uma identidade própria. Um bom concerto para antecipar a noite.
Rumados ao Anfiteatro, entrámos em mais uma “double bill”. Desta vez para a sequela “Bagatelles”, na verdade igual ao “Book of Angels” e ao “Book Masada”. A primeira meia-hora foi entregue ao Nova Quartet e foi óptima. Contrabaixo, vibrafone, bateria e piano a tocarem com uma força e um saber incríveis. Com solos cruzados, tempos rápidos, muita força e intensidade, foi um concerto que passou depressa. Zorn é espartano com as horas, não dá um minuto a mais à casa, e o Nova saiu cedo demais de palco. John Medeski no piano e Kenny Wollesen no vibrafone impressionaram pela capacidade de alternar intuitivamente entre a melodia e o acompanhamento. Trevor Dunn no contrabaixo e o feliz Joey Baron na bateria fazem um grupo a que é preciso dar mais atenção.
Foram substituídos pelo Asmodeus, trio de baixo eléctrico, guitarra e bateria. Zorn também subiu ao palco, a fim de dirigir (para quê?). Música demasiado escrita, demasiado decidida, pouco criativa nos solos. Fez-me imensa confusão ver um músico com o estatuto e a qualidade de Marc Ribot ser anulado por John Zorn, quase sentado ao seu colo, a dar-lhe ordens interpretativas. Sem espaço para solar decentemente, tocou de modo atrapalhado uma música muito definida e ostensivamente imposta por Zorn. Apesar da energia impressa pela bateria de Kenny Grohowski, as soluções repetiam-se e o som eléctrico era uma pálida imagem do uso radical que já ouvimos de outros grupos de Zorn do mesmo género.
Escrita geométrica
O dia começou na Sala Polivalente do Centro de Arte Moderna com a projecção e a sonorização ao vivo de “Pomegranate Seeds”, um vídeo realizado por Ikue Mori. Seguiu-se um outro vídeo, com manipulação ao vivo e música improvisada em computador no momento. Os vídeos eram desinteressantes visualmente e até amadores. Já a música foi excelente. Mori usa uma biblioteca sonora muito particular, com “cracks” e pequenos sons de partículas, geridos com muita inteligência e sentido musical. Tem um mundo sonoro muito próprio no computador, usa-o com contenção e muito bom-gosto, proporcionando uma audição ideal para a tarde.
A noite pertenceu aos Simulacrum (Prémio Capitão Moura para o pior nome de banda da actualidade), que surgiram no formato original, em trio. Pela primeira vez, o Anfiteatro ao Ar Livre não esteve sequer perto de encher. O grupo é a versão americana dos trios do Norte da Europa (Elephant 9, Bushman’s Revenge, Fire!) que recuperam o rock progressivo e psicadélico e o transformam em jazz. Na versão americana a coisa é mais rápida e mais dura, em jeito heavy-prog-jazz. A escrita de Zorn nesta fase é muito geométrica, com escalas espelhadas e figuras repetitivas. Pareceu que estávamos a ouvir a mesma música vezes sem conta. Arpejos espelhados, paragens.
O trio agrupa três músicos tecnicamente superiores. Matt Hollenberg, seguríssimo na guitarra e a tocar com uma velocidade tipo Al Di Meola (tipo, sublinho), teve um fraseado impecável, definidíssimo, com um uso inteligente dos efeitos e um som de guitarra lindíssimo: tudo excelente. Kenny Grohowski, já o dissemos, é um baterista superior, utilizando pedal duplo, uma afinação grave, rockeira, e um bombo generoso. É um Tesla rítmico. Medeski, no órgão Hammond, tem uma abordagem original (sim, ainda é possível!) que o faz soar a Pink Floyd ou disparar em pequeníssimas notas rápidas. Os temas foram tocados com intensidade e o ritmo aceleradíssimo próprio do heavy metal, com as paragens e as inflexões a cortarem a ideia de repetição e as boas improvisações dos três a criarem interesse. Um muito bom concerto, até porque tiveram o cuidado de usar com parcimónia a escrita do “special editioned”.
Lufada de ar fresco e aborrecimento
Veio o primeiro dia de Agosto com um concerto no Auditório 2 de flauta contrabaixo. Não conseguimos perceber a ligação que existirá entre Dick e Zorn e felizmente não foi imposta a este músico a fórmula “radical jewish culture”. Um concerto honesto, muito interessante de seguir, com o flautista a apresentar uma série de soluções técnicas e expressivas, usando cinco microfones para captar o sopro, as chaves, a voz passada através da flauta. Foi uma lufada de ar fresco num festival que já começava a enjoar de tanta bagatela.
A noite foi novamente dupla. Os primeiros 30 minutos (quase cronometrados) pertenceram ao grupo de Kris Davis com Mary Halvorson na guitarra, Drew Gress no contrabaixo e Kenny Wollesen na bateria. Tal como acontecera com o Nova Quartet, Kris Davis mostrou o seu génio ao conseguir extrair daquelas melodias uma beleza maior. As “Bagatelles” soaram surpreendentemente bem, até porque o uso que a pianista fez da pauta foi mínimo. Excelente a secção rítmica e incríveis a guitarra e o piano. Depois instalou-se o John Medeski Trio e com ele o aborrecimento. A guitarra de Dave Fiuczynski estava altíssima e absorvia o som do órgão. Calvin Weston desiludiu muito com dois solos acéfalos. A música soou a uma versão ligeira e funkzita do dia anterior, com um guitarrista que mexeu no volume do amplificador e estragou o som do “soundcheck”. (G.F.)
Para lá do horizonte Zorn
Numa bem-vinda proposta fora do horizonte Zorn, os portugueses Slow is Possible apresentaram-se quinta-feira, dia 2, no Auditório 2. Com um disco recente na bagagem - “Moonwatchers”, edição Clean Feed –, o grupo mostrou a sua música muito particular, um pós-rock de desenvolvimento lento que evolui para crescendos explosivos e quebras surpreendentes. A essência está nas composições e estas atravessam géneros sem pedir licença, entre o jazz, o rock e até elementos da clássica. A formação da Beira Interior trabalha uma desconcertante mescla instrumental, com João Clemente (guitarra eléctrica), Bruno Figueira (saxofone alto), André Pontífice (violoncelo), Nuno Santos Dias (piano), Ricardo Sousa (contrabaixo) e Duarte Fonseca (bateria). Se a música começou por soar diferente, à medida que o concerto avançou as mesmas estratégias foram-se repetindo, perdendo-se o efeito surpresa. Percebeu-se a proximidade natural com o universo Zorn, pelo cruzamento de estéticas e, particularmente, pelo “flirt” com o rock.
Numa fuga ainda maior à toada geral, o trio Highsmith levou à noite, ao Anfiteatro da Gulbenkian, uma proposta de música livremente improvisada. O projecto nasceu da união da electrónica de Ikue Mori (“laptop”) com o piano de Craig Taborn (que já levou ao Jazz em Agosto o seu projecto Junk Magic, talvez a sua obra mais marcante até ao momento). O baterista Jim Black, do trio Azul de Carlos Bica, juntou-se ao duo. Tratou-se de uma sessão de criação em tempo real, sem condições pré-existentes, tendo como principal instigador o piano. Taborn partiu de abordagens clássicas ao teclado para procurar soluções criativas, apoiado pela electrónica fluida de Mori e pela bateria de Black, que tentou marcar a sua presença pelo estabelecimento de diálogos não intrusivos. Embora tenha havido momentos marcantes, nunca se chegou a encontrar uma perfeita união musical.
Dry version, wet version
Os Dither vieram na sexta, consistindo num quarteto de guitarras (por vezes com três apenas a tocar, em combinações variáveis) que junta James Moore, Taylor Levine, Josh Lopes e Gyan Riley. O grupo actuou no Auditório 2 ao fim da tarde e começou precisamente por se apresentar em trio. No repertório tinham as “Game Pieces” de Zorn, escritas em 1977 e 1978. Estes temas combinam momentos de improvisação com um sistema de regras previamente definido (o mais conhecido, “Cobra”, já foi tocado na Casa da Música com músicos portugueses). O grupo começou por interpretar “Hockey”, primeiro numa “dry version”, como lhe chamou Moore, e depois numa “wet version”, com um trio diferente. Também em trio foi interpretado “Fencing”, o tema mais elaborado e com mais contrastes, com melodias a sobreporem-se a abstracções. O quarteto completo apenas se juntou em palco para a interpretação do último tema, “Curling”. Mais atmosférico, foi também o mais saboroso. Esta foi uma das actuações mais curiosas de todo o festival e ficámos mesmo com a ideia de que teria sido interessante incluir mais “game pieces” no programa.
À noite, no Anfiteatro ao Ar Livre, tocaram os Insurrection de Matt Hollenberg, Julian Lage (ambos em guitarra eléctrica), Trevor Dunn (baixo eléctrico) e Kenny Grohowski (bateria). Este concerto oscilou entre dois mundos, com o grupo a alternar a interpretação de dois tipos de música muito particulares: por um lado, temas mais intensos, com “riffs” sujos e ritmos acelerados, a bateria e o baixo como motores de propulsão, entre o prog e o metal (numa entrega mais próxima dos Simulacrum, por exemplo); e por outro, com uma toada mais límpida, feita de melodias cristalinas e guitarras surf, sobretudo em tempos médios (numa estética próxima de “The Gift” ou “The Dreamers”). A dupla de guitarras entrelaçava-se sem atropelos: nos temas mais sujos, os “riffs” cruzavam-se; nos mais pausados, deixavam-se escutar com delicadeza. Dunn, um dos mais versáteis e originais baixistas do nosso tempo (Mr. Bungle, Tomahawk, Fantômas, Trio Convulsant, etc.), foi fundamental na dinâmica do grupo. O concerto contou com um momento caricato: Hollenberg teve um percalço e foi obrigado substituir uma corda da sua guitarra; surpreendentemente, conseguiu fazê-lo durante um solo de bateria de Grohowski, e retomou a música com toda a tranquilidade. Actuação muito interessante, sobretudo pela amplitude das abordagens.
Sem margem para enganos
Naquele que foi o dia mais quente de sempre que Lisboa já registou (4 de Agosto), muitos encontraram abrigo no ar condicionado do Auditório 2 da Gulbenkian. No fim da tarde de sábado, o trio Trigger apresentou-se para interpretar composições de “Bagatelles” e “Apparitions” de John Zorn. Will Greene (guitarra eléctrica), Simon Hanes (baixo eléctrico) e Aaron Edgcomb (bateria) trabalharam os temas em versão rock escorreita, com uma música enérgica, imediata e intensa. Foi o concerto mais curto do festival, com menos de 40 minutos (já incluído o “encore”), mas também dos mais explosivos.
Já caído o sol, Craig Taborn apresentou-se a solo, para interpretar Zorn. Foi uma actuação límpida, quase clássica, com Taborn a exibir a sua elegância e sobriedade. Seguiu-se o Brian Marsella Trio, com o pianista líder a ser acompanhado por Trevor Dunn (no contrabaixo, depois de na noite anterior se ter apresentado no baixo eléctrico) e Kenny Wollensen (na bateria). O trio dedicou-se ao “Masada II - Book of Angels” (volume 31) e, em contraste com a austeridade do solo anterior, mostrou a sua excelente dinâmica colectiva. Do fulgor de Marsella, Dunn e Wollensen nasceu uma música vibrante, um dos mais puros exemplos da estética jazzística de todo o Jazz em Agosto deste ano. Houve espaço para dois temas no “encore”: Marsella a solo, e um final em trio. O aplauso entusiasmado do público não deixou margem para enganos.
Entre matrizes
Julian Lage já tinha actuado enquanto membro dos Insurrection, e Gyan Riley, filho do lendário compositor Terry Riley (“A Rainbow in Curved Air” e “In C” são obras obrigatórias), já tocara integrado no quarteto Dither. No domingo, ao fim da tarde, apresentaram-se em duo. O atípico duo de guitarras acústicas começou por apresentar ao vivo a música do disco “Midsummer Moons” (2017), constituído por interpretações da música de Zorn inspirada na imagética do luar shakesperiano. O virtuosismo e a sensibilidade da dupla resultaram num trabalho harmónico rico, simultaneamente delicado e belo. O duo ainda interpretou “Bagatelles” de Zorn, fazendo sempre ressaltar das cordas uma imprevista beleza. Na recta final do festival, o dedilhar primoroso de Lage e Riley acabou por mostrar a faceta mais doce de Zorn. O público reconheceu e aplaudiu entusiasticamente.
O festival encerrou nessa noite com a actuação dos Secret Chiefs 3, interpretando música de Masada. O septeto liderado por Trey Spruance atirou-se no Anfiteatro a uma mescla de klezmer, rock e jazz. Instrumentalmente, destacaram-se a dupla de guitarras (Spruance e Jason Schimmel) e o violino (Eyvind Kang), bem apoiados pelos teclados de Matt Lebofsky, pelo baixo eléctrico de Shamir Blumenkranz e pela dupla de bateria e percussão (Kenny Grohowsky e Ches Smith, que iam alternando de posição, consoante os temas). Se o violino puxava pelo lado mais folk, os “riffs” das guitarras contrastavam com uma faceta rock. Entre essas matrizes, os Secret Chiefs 3 levaram à Gulbenkian um espectáculo competente e que não defraudou. Foi um fim de festa com casa cheia. (N.C.)