Jazz ao Centro
Bons argumentos
Sem Carla Bley, porque ficara doente na sua passagem pela Alemanha, os Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra tiveram outros bons argumentos para conseguirem mais uma boa edição, a 16ª do festival. Disso, e de mais, aqui vos falamos…
Na semana anterior já tinham acontecido quatro concertos, designadamente os da dupla Sylvie Courvoisier / Mary Halvorson, do trio de Pedro Sousa, Rodrigo Pinheiro e Gabriel Ferrandini, dos Centauri de André Fernandes e dos Lokomotiv de Carlos Barretto, com uma assumida e clara incidência da 16ª edição do Jazz ao Centro no melhor que a produção nacional tem dado a lume. Já estabelecido um contexto, o segundo arranque do festival de Coimbra a 25 de Outubro, depois de uns dias de pausa, não poderia ter tido maior simbolismo. No palco do Salão Brazil apresentou-se o ainda pouco conhecido Fragoso Quinteto, assinalando o início de um novo projecto do Jazz ao Centro Clube, o Cena Jovem Jazz.pt. Destinada a promover o trabalho dos músicos recentemente saídos dos cursos profissionais e das escolas superiores que encontram dificuldades em desenvolver e apresentar as suas criações, a iniciativa passara por uma residência artística em que o grupo liderado pelo contrabaixista e compositor conimbricense João Fragoso gravara um disco que será lançado no início do próximo ano pela JACC Records.
O concerto era a cereja sobre o bolo, o primeiro de vários que estão a ser preparados, e se, durante o “soundcheck” da tarde, tudo indicava que iríamos encontrar um hard bop que partia dos Jazz Messengers de Art Blakey para chegar a Charles Mingus, o que se ouviu à noite foi bem diferente: uma música de autor, personalizada, com a escrita de Fragoso a derivar sincreticamente das muitas músicas que lhe interessam. Com João Almeida no trompete, João Carreiro na guitarra, Miguel Rodrigues na bateria e o menos jovem Albert Cirera no saxofone tenor (a quem, ao jantar, os outros chamavam de “avô”), o jazz deste grupo é o resultado do cruzamento de uma série de tendências. Alturas havia de um melodismo melancólico particularmente sugestivo, outras em que ressoava o som Blue Note da década de 1960 e outras ainda, sobretudo nos solos, em que se desembocava no free e mais além, com, por exemplo, Cirera a introduzir algum do léxico da improvisação reducionista. Tudo isto dentro de estruturas algo extravagantes na sua relação sequencial dentro da mesma peça, com as incursões mais convencionais no que respeita ao jazz a soarem de maneira fresca e imprevisível. Foi um bom concerto, fazendo crer que muito há a esperar destes músicos.
O dia seguinte foi de contrastes. Ao final da tarde, os também denominados Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra ocuparam dois colégios da Rua da Sofia, no propósito de, por meio da música, atrair as atenções para o património da cidade. No Colégio do Espírito Santo, um grupo de crianças sob a orientação de Cheila Pereira interpretou em jeito performativo – sob a designação “Satélite Jazz” – uma peça gravada dos Paisiel. Foi como que uma agradável introdução ao que a dupla em causa faria depois, a uns passos dali, no jardim interior do Colégio da Graça. Antes, assistiu-se à estreia a solo de João Mortágua na electroacústica em tempo real, com “Holi”. A dita veio com problemas, e estes não foram apenas de execução: eram formais. Se ficou evidente que o músico ainda não controla a tecnologia, o que mais transpareceu da actuação foi a ausência de um discurso específico para o formato. Em vez de uma efectiva integração entre os saxofones alto e soprano, a flauta de bisel, a melódica e a voz com os processadores electrónicos, deparámo-nos com o que de pior pode existir numa atitude de experimentação quando não há verdadeiro cometimento: algo de tão infantil quanto o que víramos antes, surgindo cada tema como um mero divertimento ou nem isso, antes como inúteis tentativas de que alguma coisa acontecesse sem que antes se tivesse definido o ponto de chegada. As fontes sonoras eram diversas, mas os “outputs” aconteciam com igual tipo de sonoridade, iguais situações, igual inconsistência e igual desinteresse, chegando ao ponto de afectar as imensas qualidades instrumentais e imaginativas que o músico em outras circunstâncias tem revelado. Mortágua terá de reequacionar os termos deste seu novo investimento, que por enquanto vai contra o prestígio por ele já conquistado.
As diferenças perceberam-se quando, logo de seguida, nas arcadas do mesmo colégio, se ouviu Julius Gabriel igualmente a ligar o sax tenor a samplers e a pedais de efeitos, com outra competência e uma linguagem plenamente estabelecida. O saxofonista alemão apresentou-se com a fórmula Paisiel, partilhada com o baterista João Pais Filipe, e este foi um dos melhores momentos da parte do festival a que assistimos. Com um plano rítmico intersectado entre África, o techno, o krautrock e o minimalismo, uma cortante abordagem saxofonística que aludia às contribuições de Steve Mackay para o pré-punk dos Stooges de Iggy Pop e uma electrónica meio ambiental e meio exploratória, os Paisiel foram um exemplo de como bem aproveitar referências para se construir algo de distinto. No lugar de um bombo, Filipe utilizou um gongo de sua própria manufactura como parte da bateria, o que por si só caracteriza a singularidade do duo. O público aderiu com entusiasmo, pouco preocupado com a dosagem de jazz colocada na proposta.
À noite, no Salão Brazil, Desidério Lázaro entregou o repertório do seu mais recente álbum, “Moving”, entrecortado por temas mais antigos, a um grupo diferente daquele que gravou o disco e com substanciais alterações relativamente a este. Com Ricardo Pinheiro na guitarra, António Quintino no contrabaixo e no baixo eléctrico e o jovem Diogo Alexandre na bateria (uma revelação a seguir atentamente no futuro), este outro combo soou mais limpo e mais alinhado com o estilo de fusão. Sempre que uma orientação mais rock transparecia, o saxofonista líder equilibrava o alinhamento com algo mais próximo do “mainstream”, numa estratégia que se revelou eficaz para prender ouvintes de gostos diversos. Lázaro esteve no topo das suas capacidades, com um som de tenor possante e redondo, cumprindo com o muito que dele se espera. Pelo seu lado nada de novo: a surpresa da noite veio, sim, de Pinheiro, que nunca tínhamos ouvido neste enquadramento. Estava antes agendada uma ida até ao Convento de São Francisco, para escutar o trio de Carla Bley com Andy Sheppard e Steve Swallow, mas uma pneumonia retivera-a em Estugarda, quando faltavam ainda algumas datas para o final da sua digressão europeia. Lázaro e os seus parceiros não compensaram a ausência, mas estiveram muito perto disso…
O último dia do Jazz ao Centro (27 de Outubro) teve início à tarde com aquela que foi a segunda prestação do projecto Boca de Incêndio, a primeira aberta ao grande público, depois de uma sessão exclusiva para as escolas secundárias de Coimbra. Na Black Box do Convento estiveram Raquel Lima (voz, movimento), Yaw Tembe (trompete, “sampling”, voz, movimento) e Sebastião Bergmann (percussão, movimento), para uma performance pormenorizadamente encenada e cenografada em que jazz e hip-hop por ocasiões se confundiam, com intervenções faladas e cantadas em Português, Crioulo e Inglês. Lima foi uma boa surpresa e Tembe mostrou-nos uma outra faceta da sua sempre ascendente actividade. Caída a noite, mas no Grande Auditório, seguiu-se o concerto dos LAN de Mário Laginha, Steve Arguelles e Helge Norbakken. As composições eram as de “Setembro”, um dos grandes álbuns de 2017, maioritariamente do pianista e regra geral introspectivas, com uma beleza feita de nuances emocionais e de construção. Em cena e numa sala com as dimensões daquela, a música pareceu, no entanto, demasiado arrumada e distante. Se Laginha e Arguelles, este nos saxofones tenor e soprano, assinaram excelentes solos e estiveram magnificamente entrosados, o inevitável aconteceu: as atenções viraram-se para o que, de mais impactante, fazia o baterista, muito graças aos invulgares timbres que tinha ao dispor, tocados em tambores norte-africanos e jantes de automóvel, e a toda a gestualidade implicada pelo seu uso.
O fecho fez-se, mais adiante, no Salão Brazil, com o regresso dos Corda Bamba à Cidade Universitária. No ano passado o grupo estivera ali em residência e gravou um disco ainda à espera de edição, e agora voltou com uma alteração de circunstância – Mark Sanders no lugar de Roger Turner. O baterista britânico mais os portugueses Hugo Antunes (contrabaixo) e Luís Vicente (trompete), o inglês Alexander Hawkins (piano) e o norte-americano John Dikeman (saxofone tenor) encerraram os Encontros de forma particularmente intensa, alinhada com a estética do grito formulada pelo free jazz histórico e pela “old school” da livre-improvisação. O que deram ao público esteve quase sempre no vermelho, ou seja, nos antípodas do que, no final da tarde, pude ouvir de Hawkins antes de chegarem os seus companheiros de banda para a prova de som (um cintilante e meticuloso Bach), e dele e Dikeman quando se atiraram aos blues, fazendo lembrar a parceria de Archie Shepp e Horace Parlan. Assim não foi nos minutos em que o concerto entrou por terrenos mais abstractos e com mais espaços, bem como numa longa passagem, apenas com a secção rítmica, em que se escolheu o bebop como vocabulário. A preceito, diga-se, com o clássico “walking bass” e com “swing” de bateria. O Jazz ao Centro terminava, deste modo, em festa.