Cirera / Lencastre + Mars Williams “An Ayler Xmas”
Apoteose de Natal
A semana que passou trouxe à Parede, no concelho de Cascais, dois concertos especiais. Num ouvimos a dupla de Albert Cirera e João Lencastre, e no outro um projecto em que Mars Williams (foto acima) celebrou em simultâneo o legado de Albert Ayler e o Natal, com Rodrigo Amado, Luís Lopes, Vasco Trilla e, como convidado-surpresa, o trompetista Peter Evans. Foi a apoteose e vai haver mais, antes que o ano termine.
Na despedida do ano, a SMUP está a alinhar na sua programação uma série de concertos que novamente a coloca no centro das atenções não só de quem vive na linha de Cascais como da vizinha Lisboa. Na semana que passou foram dois em dias seguidos, 13 e 14 de Dezembro, e outros virão na proximidade do Natal. Primeiro, o sótão recebeu o duo de Albert Cirera e João Lencastre, um nos seus habituais saxofones tenor e soprano e o outro dividindo as atenções entre a bateria e a electrónica, com dois teclados e outros dispositivos a incluírem-se no seu normal “setup”. Tudo fazia adivinhar desenlaces musicais que normalmente não lhes ouvimos, e assim aconteceu, com a relevância de que esta foi uma das poucas oportunidades que tivemos, e vamos ter daqui por diante, de ouvir o músico catalão: este trocou há uns meses a capital portuguesa por Copenhaga como base de trabalho. Em 2019, só o teremos por cá em Março e em Julho.
A música era integralmente improvisada, e ainda assim a vertente composicional de Lencastre fez-se sentir. Os sintetizadores serviram-lhe para fornecer os esqueletos de tudo o que se construiu, regra geral (entre várias excepções) com “loops” que ou davam chão ou emolduravam os improvisos de ambos os intervenientes. E em se tratando de um percussionista, não surpreendeu que os ditos tivessem um carácter rítmico e de “groove”, pontuando desenvolvimentos que, de outro modo, soariam bem mais abstractos. O grande factor de curiosidade do concerto foi, precisamente, essa associação: os materiais electrónicos surgiram crus, primários, umas vezes lembrando-nos os do krautrock dos Setentas, outras o experimentalismo dos pioneiros norte-americanos e europeus tanto da área “erudita” como da do jazz criativo e outras ainda alguma coisa do techno de Detroit original. Neste contexto, tudo o mais surgia em contraste, fossem os borborigmos do tenor preparado (com latas na campânula e uma vara dentro do saxofone, para distorcer / abafar os sons), na linha da “new school” da improvisação livre, os fraseados em soprano mais típicos do free jazz ou as intrincadas texturas baterísticas, sempre carregando a bagagem da história.
Sem nunca chegar a altos níveis de intensidade, a performance fez-se de inquietudes, com estas a orientarem o carácter exploratório das incursões. Só no final houve uma distensão dessa entrega nevrótica, por mais que controlada, com Lencastre a estabelecer gradualmente uma agradável paisagem sonora num dos teclados, usando poucas notas. Na noite seguinte, já o projecto “An Ayler Xmas” de Mars Williams foi explosivo do início ao fim. Os raros momentos pausados e nuançados ocorreram mais como interlúdios, transições, do que como alternativas de expressão. Em jeito de “medley”, o saxofonista originário de Chicago combinou diversos temas de Albert Ayler e canções tradicionais de Natal em duas longas improvisações, tendo consigo um grupo português constituído pelo igualmente saxofonista tenor Rodrigo Amado, o guitarrista Luís Lopes e o baterista (com dupla nacionalidade catalã) Vasco Trilla. A sala estava à cunha, com gente que ou não quis perder a oportunidade de assistir a uma actuação daquele que é um dos mais importantes cultores do sax tenor na actualidade ou foi atraída pela temática natalícia do evento. Quando a segunda peça ia ter início esperava-nos uma surpresa: Williams chamou à cena nem mais nem menos do que Peter Evans, que ficara em Lisboa de férias depois dos concertos que realizou em Portugal com a Orquestra Jazz de Matosinhos.
Se a prestação do grupo já tinha uma dimensão quase orquestral, tanto devido à massa de som como aos uníssonos dos dois saxofones na apresentação dos temas, com o trompete de Evans ainda cresceu mais. E se com o duo anterior já houvera uma gestão de oposições, os contrastes foram chave no apoteótico serão que se estava a desenrolar. Lopes interveio em registo noise, com a sua guitarra em permanente “feedback”, sujando as melodias (as características marchas e melopeias de Albert Ayler) com espessos muros de estridência – talvez, até, demasiado, por vezes impedindo a audição do que fazia um ou outro dos seus companheiros. Tudo era excessivo, desmesurado, impactante, e inclusive, numa ou noutra ocasião, algo violento, mas nunca se caiu na gratuitidade – o espiritualismo de Ayler a tal convidava, e os seus êxtases da alma feitos música eram já por si exaltantes e transcendentes. A diferença esteve no facto de que, no final da segunda década do século XXI, esta celebração do free jazz místico do malogrado saxofonista teve uma dimensão que ecoou os procedimentos do punk e do metal, com Mars Williams usando calças de cabedal à semelhança dos ídolos do rock, ele que, para todos os efeitos, tem um percurso paralelo nessa área.
As datas que se seguem na Parede trazem os Beat the Odds a 19 de Dezembro, com o percussionista Nuno Morão a substituir o segundo contrabaixista deste quarteto transnacional em que encontramos o violoncelista português Ricardo Jacinto e o contrabaixista franco-alemão Pascal Niggenkemper, e os Ikizukuri de Julius Gabriel, Gonçalo Almeida e Gustavo Costa, a 21. O ano termina na SMUP entre a improvisação de câmara e o jazzcore…