The Selva
Começou bem o ano
O grupo de Ricardo Jacinto, Gonçalo Almeida e Nuno Morão está a viver uma nova fase do seu percurso, como se verificou no primeiro concerto de 2019 na paredense SMUP. Na procura de uma improvisação trans-idiomática ligaram-se à electricidade e tocaram uma música que foi beber à folk e ao pós-rock, por vezes com repetitivismos rítmicos à maneira dos Dawn of Midi. O público entrou em delírio.
Foi o primeiro concerto do ano na SMUP e o regresso dos três músicos que o protagonizaram ligava-o aos dois últimos de 2018, com Beat the Odds (no qual participaram Ricardo Jacinto e Nuno Morão) e Ikizukuri (que contava com Gonçalo Almeida). O trio The Selva apresentou no passado dia 5 de Janeiro algo de completamente diferente, mas de alguma maneira foi como se, neste projecto, coexistissem algumas das tão diferentes coordenadas que definem os outros. E diferente foi também, se bem que num plano de continuidade, do que ali o trio fez em 2016, quando estava no seu início e ainda não havia disco.
Se na altura já havia o propósito de descolar a música das sonoridades-tipo da improvisação livre, o que dele ouvimos agora seguiu outras estratégias – o próprio “setup” dava essa indicação antes de o concerto ter início, com o violoncelo e o contrabaixo ligados a pedais de efeitos e a amplificadores e a bateria incorporando algumas extensões percussivas. Como se confirmou, uma música iminentemente acústica deu lugar a outra em que havia processamentos, distorções de sinal e ruído branco. Nesta já não se escutaram associações de ambientes renascentistas a rítmicas de influência africana ou combinações de rock progressivo com o mais assumido free jazz, por meio da revisitação das comuns raízes nos blues. O trans-idiomatismo que então ficou definido tem nesta nova fase do grupo distintas configurações e surge muito mais estruturado: em vez de mimetizações do classicismo de câmara estiveram melodias folk (regra geral introduzidas por Jacinto), banhadas num decidido alinhamento pelo chamado pós-rock.
Pelo meio foi-se de um trabalho iminentemente textural e abstracto a situações norteadas por uma utilização minimalista e repetitiva do “beat”, chegando a parecer algo dos Dawn of Midi, dos The Necks ou até dos Can – num momento, até, com Morão a aproximar-se do “riffing” típico do metal. Quando se entrava por descampados de especial melodismo, algo servia para contrariar o que resultasse demasiado “bonito”, fosse um súbito sair de escala ou um despropositado bruitismo electrónico. Ou seja, os The Selva de 2019 mantêm a sua identidade buscando soluções alternativas e abrindo ainda mais o espírito de síntese de que originalmente deram conta.
Tanto assim que, ao longo da sua actuação, Jacinto, Almeida e Morão instalaram no público a ideia de que tudo era possível nos caminhos que se anunciavam, mesmo o menos previsível. E cumpriram com esta até ao final, para entusiasmo de uma sala que, nesta “rentrée”, estava à cunha. Não cabia mais ninguém no sótão da SMUP e os aplausos, os assobios e os gritos com que foram premiados surpreenderam os próprios músicos, como se verificou pela incredulidade dos seus sorrisos nos agradecimentos de despedida. Começou bem o ano para os lados da linha de Cascais, restando-nos esperar pela saída de um segundo álbum que documente esta muito feliz evolução.