Vijay Iyer / Craig Taborn
De tudo um pouco
Dois dos músicos mais importantes do nosso tempo entraram em colisão num concerto da Culturgest que levou para o palco o sublime tumulto colocado no álbum “The Transitory Poems”, agora editado pela ECM. Foi uma noite deveras especial e a jazz.pt esteve presente.
Entrevistados poucas horas antes do seu concerto de 19 de Março passado no Grande Auditório da Culturgest (entrevista essa que aqui publicaremos em breve), Vijay Iyer e Craig Taborn optaram por mudar a ênfase da pergunta quando questionados acerca das percentagens aproximadas de improvisação e escrita na sua música, respondendo: «É um processo 100% criativo.» Com isto, procuravam chamar a atenção para o facto de que há algo de potencialmente enganador na habitual dicotomia escrita / improvisação, sobretudo quando tida como idêntica à dicotomia composição / improvisação, esta não só enganadora como falsa. «Compor é improvisar com uma caneta», observava já Stravinsky e, no mesmo espírito, Bill Evans afirmava que improvisar é, tão somente, fazer coincidir o tempo da composição com o da execução. E é precisamente enquanto compositores que mais sentido faz considerar Iyer ou Taborn, músicos criativos completos nas mais variadas frentes, que tanto tocam, escrevem, improvisam ou interpretam.
O modo como compõem (em tempo real) em duo vem, no entanto, desafiar as nossas noções mais comuns de composição, afastando-se, inclusive, daquilo que têm vindo a fazer noutros contextos. Se tanto Taborn a solo (ouça-se, a este respeito, o extraordinário “Avenging Angel”, um marco da música para piano no século XXI) como Iyer em colaboração com o Brentano String Quartet ou com Wadada Leo Smith (“Mutations” e “A Cosmic Rhythm with Each Stroke” são também já referências) nos têm habituado, cada um à sua maneira, a um rigor e uma concisão notáveis, construindo peças focadas mesmo quando atingem altos níveis de intensidade, nas quais se distingue princípio, meio e fim, os procedimentos aqui adoptados culminam antes num inusitado e buliçoso “zapping”, estando o curso da música a todo o instante sujeito a mudanças de direcção mais ou menos inesperadas.
Ao longo das cinco partes que constituíram o concerto (contando já com o “encore”), foi como se, ao invés de nos terem sido apresentadas cinco peças, tivéssemos sido guiados por cinco salas diferentes da mesma exposição, cada uma contendo em si ambiências conflituantes. À excepção da quarta, mais lírica, evocadora aqui e ali de ares impressionistas ou do “Dark Intervals” de Keith Jarrett, os contrastes dentro de cada peça (ou sala, se quisermos preservar a analogia) foram tais que se chegou a tornar difícil formar uma imagem clara de cada uma delas ou mesmo de as distinguir umas das outras. Iam ficando, no entanto, as pequenas preciosidades que os dois descobriam no meio do tumulto, entre as quais as próprias transições, algumas a roçar o sublime.
Se, do ponto de vista pianístico, Craig Taborn é dificilmente excedível (e não será exagero algum afirmar que se trata de um dos maiores pianistas da actualidade em qualquer género musical, tendo vindo a contribuir para a expansão das próprias possibilidades sonoras e expressivas do instrumento), ele é também um dos mais finos ouvintes que temos entre nós, pronto a reagir à mais ínfima sugestão que lhe surja no momento, sempre com o requinte e o bom gosto a que nos tem habituado, além de um criterioso organizador de som.
Já Vijay Iyer, cuja abordagem tem tanto de cerebral quanto de visceral e que não raras vezes explora o piano como um verdadeiro instrumento de percussão (mesmo quando em “pianissimo”), faz sobretudo valer as suas qualidades de orquestrador e “bandleader”, tendo sido ele quem mais vezes esteve no comando das operações. Foi, sem dúvida, Taborn aquele que mais brilhou em termos individuais, ainda que a sua intenção fosse, acima de tudo, realçar o resultado da parceria, mas muito do melhor que ia fazendo surgiu justamente na sequência de desafios lançados por Iyer, que tanto ia semeando a desordem como sugerindo, com cautela, ideias precisas.
Desde momentos de verdadeira erupção, em que acordes atonais e “clusters” coabitavam com padrões ritmicamente complexos que tanto iam beber às polirritmias africanas como ao minimalismo de Glass ou Reich ou até a certas músicas contemporâneas de dança, repetidos até à exaustão (não faltaram os inconfundíveis ostinatos tabornianos), a atmosferas mais espaçosas, mas sempre com uma tensão irresistível a pairar, passando por ecos transfigurados de Monk, Gershwin ou Stravinsky, para não falar de Cecil Taylor, um dos homenageados do disco “The Transitory Poems” e autor da expressão que lhe serve de título, houve de tudo um pouco nesta colisão entre dois dos músicos mais importantes do nosso tempo.
E o mais curioso é que do caos aparente, da sobreposição de elementos irreconciliáveis “prima facie”, resultou uma unidade tão bela quanto perturbadora, nem iyeriana nem taborniana, mas antes a síntese de parte de dois universos que, apesar de toda a história que partilham e em torno da qual aqui se reúnem, apresentam entre si ainda mais diferenças do que afinidades dos pontos de vista técnico e estético. Ou, se preferirmos, tão somente do artístico, já que, em última análise, e como os dois por certo concordarão, não faz sentido separar as duas coisas.