MIA – Encontro de Música Improvisada de Atouguia da Baleia
10 anos depois
O “congresso dos improvisadores” do concelho de Peniche comemorou o seu 10º aniversário com uma maratona de sete dias de concertos, “workshops” e “jams” que teve como principais chamarizes Axel Dorner, Carlos “Zíngaro”, Sei Miguel, Nuno Rebelo e Marco Scarassatti, mas deu a ouvir muitos mais valores, entre jovens e veteranos. A jazz.pt esteve presente e conta como foi…
Não poderia ter sido mais irónico: um dos pontos altos da décima edição do MIA, já na última noite do “congresso dos improvisadores” de Atouguia da Baleia (concelho de Peniche), foi a aplicação prática de uma estrutura previamente estabelecida. A peça escrita por Nuno Rebelo, em prosa, “Composição para Trio de Improvisadores”, e interpretada por Manuel Guimarães ao piano, AnnaMarie Ignarro no clarinete e Helena Espvall no violoncelo suscitou uma gargalhada geral no auditório da Sociedade Filarmónica.
Os termos eram estes: «O pianista imagina que toca notas stacatto, mas o clarinetista e o violoncelista imaginam que o pianista toca notas longas nas cordas do piano. O pianista imagina que o violoncelista imagina que toca notas pizzicatto e tem razão! O clarinetista imagina que nesse momento não se toca. Mas os outros dois músicos imaginam notas stacatto no clarinete. De repente, todos os três imaginam que, afinal, há um quarto músico em palco: um guitarrista bastante incómodo. Todos os três imaginam a melhor maneira de lidar com os sons despropositados do guitarrista imaginário.» Como se pode concluir, nada aconteceu de audível, mas o aviso já vinha nas folhas de papel distribuídas pela sala: “Esta peça não é uma interpretação da famosa “4’33’’” de John Cage. O facto de durar 4’33’’ e tudo se passar em silêncio não é mais do que uma coincidência.»
O mesmo Nuno Rebelo foi uma das figuras em destaque neste aniversariante MIA. Durante toda a semana do evento, de 27 de Maio a 2 de Junho, teve abertas ao público, no Vespa Clube da vila, uma série de instalações sonoras que ocuparam várias salas e participou tanto em alguns dos grupos sorteados que tocaram na Filarmónica nas tardes de sábado e domingo como nas “improjams” que tiveram lugar nas madrugadas de sexta e sábado em outro espaço, o Armazém do Grupo Desportivo da Atouguia. Nestas, o antigo líder dos Mler Ife Dada fez-se notar em duas circunstâncias: um duo com Alvaro Rosso em que ambos partilharam o mesmo baixo eléctrico, com o músico uruguaio radicado em Lisboa sentado por detrás de si, e outro de guitarras à desgarrada com Cortez-Lamont III.
Assim se cumpriu o que vem sendo hábito em todas as edições do Encontro de Música Improvisada: entre os participantes (neste ano cerca de 100, vindos dos mais diversos países) há uns quantos que geram o entusiasmo dos seus pares, uns – os neófitos – por revelarem as suas capacidades, outros justificando a fama que já tinham de outros anos ou de outros feitos. Além de Rebelo, isso aconteceu agora com o acordeonista italiano Domenico Saccente, fosse no concerto do Kerlox Dynamic 4tet, nas formações “ad-hoc”, nos “workshops” (no de Carlos “Zíngaro” era o primeiro a reagir aos desafios do formador) e nas noites de “jamming” sem regras, como na ocasião em que emparceirou com o cabeça-de-cartaz do festival, Axel Dorner. Saccente é, decididamente, um músico a seguir com toda a atenção, até pela forma como procura fazer com o acordeão outras coisas que não notas prolongadas, sustenidos, glissandos ou “drones”.
Aconteceu, também, com o acima referido Manuel Guimarães, que para além de uma inesgotável criatividade improvisacional nas vezes em que se sentou ao piano ou pegou numa pequena guitarra teve oportunidade igualmente de desmentir aqueles que ainda julgam (alguns homens do jazz português dizem-no à boca cheia) que só se dedica às músicas improvisadas quem não é suficientemente bom para tocar outras coisas: era ouvi-lo no Armazém a interpretar ragtimes ou, num momento de aquecimento na Sociedade Filarmónica, a acompanhar Yedo Gibson numa divertida versão de “Garota de Ipanema”. Acrescente-se que um sempre acutilante Yedo no saxofone soprano, tendo o mesmo levado consigo para Oeste um dos grandes valores da improvisação de S. Paulo, no Brasil, o seu irmão baterista Márcio Gibson.
E aconteceu com uma estreante absoluta no MIA, a jovem Kali, presente para o concerto do trio Salomé. Ao trompete e na bateria, a integrante da banda de “punk carnavalesco” Panelas Depressão foi a surpresa do ano. As atenções estiveram ainda viradas para o baixista e ocasional pianista André Calvário, na segunda vez em que participou no MIA – desta vez acumulando com funções de montagem, assistência de som e controlo das luzes. O também membro dos Salomé levava consigo um percurso de vínculos musicais com outros improvisadores reunidos na Atouguia, como Jorge Nuno, Luís Guerreiro e Pedro Santo (seus companheiros nos Dead Vortex e o primeiro também nos Signs of the Silhouette) e João Sousa (Cardíaco, Ácidos). O regresso ao Encontro, cinco anos depois, do brasileiro Marco Scarassatti foi outro ponto alto, ainda que a retenção na alfândega do aeroporto de Lisboa dos instrumentos inventados e construídos por este tivesse condicionado as suas prestações.
Como sempre foi de regra nas matinés sorteadas, as improvisações colectivas variaram muito de desenho, tipos de materiais e sucesso, e se na sexta-feira 31 de Maio não se proporcionaram os milagres de entrosamento a que aspiram os fãs da improvisação integral, no sábado seguinte a fasquia subiu muito alto e aí se manteve. Entre os portugueses, Maria Radich, Miguel Mira, Maria do Mar, João Madeira, João Pedro Viegas, Joana Guerra, Mestre André e outros tantos estiveram tão bem quanto antes os ouvíramos, com Carla Santana, Helena Espvall, António Caramelo e João Valinho a estrearem-se em grande nível. Os seis Ensembles MIA que subiram ao palco foram, como sempre, uma extensão desta vertente, em combinações mais alargadas que contam com a particularidade de serem dirigidas, ou seja, compostas em tempo real. Em 2019, fizeram o pleno as que tiveram Carlos “Zíngaro” (1 de Junho), Axel Dorner e Marco Scarassatti (ambos a 2 de Junho) como condutores.
Mas se estas secções da programação do MIA são as favoritas de todos, este ano o número de concertos mais convencionalmente pensados e a natureza dos grupos fixos (com dois solos e dois duos pelo meio) suscitaram um interesse especial. A começar pelo de Axel Dorner na Filarmónica a sós com o seu “trompete preparado”, no dia 1 de Junho. O músico alemão aplicou ao seu instrumento munido simultaneamente de pistões e vara um dispositivo electroacústico que tinha dois propósitos: manipulava as saídas e retenções de ar e processava os sinais acústicos, em conexão com um computador. Ao longo de narrativas fragmentárias e abstractas, o que se ouviu parecia vindo de outro planeta e gerou um rendido aplauso. Foi o mais superlativo momento de toda a festa, entre os vários que se sucederam logo a partir do primeiro dia (27 de Maio) com o solo intimista e textural da violinista Biliana Voutchkova na Igreja de S. José e dois dias depois com o dueto desta e de Dorner no mesmo local, num registo mediado entre o reducionismo e o noise.
Impacto semelhante, e com a população da vila a responder em peso à chamada, teve a actuação dos StringChamberPot de Carlos “Zíngaro”, David Alves, Ulrich Mitzlaff e Alvaro Rosso na Igreja de S. Leonardo. Numa cuidada interacção com a acústica do espaço, o quarteto de cordas transportou o legado da música de câmara para um território sem condicionantes idiomáticas, numa estranha, mas muito bela, equação entre o profano e o sacro. Com uma música feita de espaços, ressonâncias, economia de notas e aquele sentido de colectivo que permite a expressão das individualidades, o grupo maravilhou a assistência no final da tarde de 1 de Junho. Muito diferente tinha sido, no dia anterior, a actuação das Lantana na Sociedade Filarmónica, numa adaptação de circunstância (a trompetista Anna Piosik não pôde comparecer) em que às cordas de arco de Maria do Mar, Joana Guerra e Helena Espvall se associaram a voz de Maria Radich e a electrónica de Carla Santana. A amplificação dos instrumentos acústicos, em alguns casos por meio de “pickups” (infelizmente com o violoncelo de Espvall a sobrepor-se ao de Guerra), anularam os referentes clássicos que pudessem existir e conduziram a intriga para inesperados desenlaces.
Numa reposição do alinhamento original com o poeta e declamador Paulo Ramos, foi igualmente entusiasmante a intervenção dos PREC a 1 de Junho, septeto em que encontramos os dois organizadores do MIA, Paulo Chagas e Fernando Simões, com Paulo Duarte, Paulo Pimentel (um excelente pianista a quem urge fazer justiça), Miguel Falcão e Pedro Santo. Inclusive pelo simbolismo que teve neste contexto: foi a partir deste grupo que há 10 anos surgiu o Encontro de Música Improvisada de Atouguia da Baleia. Na balança estiveram uma elegância elaborada a partir de nuances e subtilezas, nunca a música se sobrepondo à voz, e uma energia de que não esperávamos. Houve outra participação declamativa bem menos conseguida e que inevitavelmente se deu a comparar, a dos Sereias a 31 de Maio. Se Tommy Hughes no baixo e João Pires na bateria impressionaram, tal não aconteceu com a execução vocal de António Pedro Ribeiro. Ainda que com uma interessante pulsação obsessiva, caiu-se em referências datadas (The Doors, por exemplo) e, no que ao texto diz respeito, num tom de provocação sem outro fim se não o de incomodar. E incomodou, pela reacção que na plateia tiveram algumas pessoas mais idosas…
Num envolvimento de alguma tipificação do improviso (a chamada “música improvisada” é tão idiomática quanto as demais, na verdade), a apresentação a 2 de Junho dos Salomé na Fonte Gótica foi uma «lufada de ar fresco», expressão que no local várias vezes se utilizou para comentar a proposta. Aproveitando as condições que o próprio espaço oferecia, Kali começou o concerto tocando o trompete para dentro da secular construção de pedra, em diálogo com o eco produzido e com as “bruitages” que, dentro do tanque vizinho, o violoncelo de Ricardo Jacinto e o baixo eléctrico de André Calvário lhe adicionavam. A situação planante e sonhadora não fazia esperar o que se seguiu, já com Kali sentada à bateria: um misto de prog e stoner rock de particular intensidade, que mais adiante se converteria à abstracção para voltar a um “groove” pesado, mas dançante. O mais próximo disto que houve neste MIA foi proporcionado por Uivo Zebra & Horns um dia antes, na Filarmónica: uma ponte entre free rock e free jazz em que ao trio de Jorge Nuno, Hernâni Faustino e João Sousa se juntaram os “horns” de Paulo Galão e Luís Guerreiro. Com resultados positivos, mas algo distantes do que a banda já deu a ouvir noutras ocasiões.
Muito bem esteve a 2 de Junho o Kerlox Dynamic 4tet, na linha do que no passado o seu mentor, o trombonista italiano Carlo Mascolo, foi apresentando na Atouguia da Baleia. Todos os seus acompanhantes na Sociedade Filarmónica, Angelo Manicone, Domenico Saccente e Felice Furioso, tiveram oportunidade para dar as suas próprias deixas, mas as mangas de rega e o cone de trânsito como extensões do trombone de Mascolo voltaram a convencer, não enquanto objectos cénicos ou de “gag” humorístico, mas na sua qualidade de recursos especificamente musicais. Sem surpresas, porque já sabíamos o que nos esperava, assim como não foi propriamente uma surpresa o que nos deu o Quarteto do Pedro, apesar da novidade de vir com o nome de Pedro Castello Lopes. A inclusão de Sei Miguel no grupo que tocou na noite de 2 de Junho fazia supor alguma ascendência do trompetista nos aspectos formais e assim se verificou: a estrutura foi a habitual dos grupos deste, com entrada a solo, em frases entrecortadas por intervalos de silêncio que se iam tornando gradualmente mais curtos, e a aglomeração dos outros instrumentos à volta do trompete de bolso, designadamente o trombone de Fala Mariam, o (superlativo) contrabaixo de João Madeira e os tambores africanos de Castello Lopes. No cômputo geral, terá sido a mais jazzística de todas as actuações.
Muito agradou, ainda, a contribuição dos Unknown Shores de João Pedro Viegas, Silvia Corda e Adriano Orrù, neste caso com Marco Scarassatti como quarto elemento, munido de um instrumento rural do Mato Grosso brasileiro, a viola de cocho. Aérea e de acento especialmente poético, umas vezes lunar e obscura e outras deixando a luz do sol entrar, a música que tocaram a 31 de Maio esteve entre o melhor que encontrámos na semana passada para os lados de Peniche. Assaz curiosa foi ainda a sessão dos transnacionais Punk Puppets Ritual no mesmo dia, com a bailarina Elena Waclawiczek, o violoncelista Uygur Vural e o contrabaixista Yoram Rosilio. Em exploração estiveram as relações entre movimento físico e emissão de som, numa encantatória dança de cadeiras.
Já não foram tão felizes as apresentações dos dinamarqueses The Way Out a 2 de Junho e dos britânicos Blanc Sceol a 30 de Maio. O projecto dos primeiros, integralmente escrito, incorporava aspectos melódicos da música popular escandinava em composições barrocas de tão cheias de ornamentações desnecessárias, num jazz que pretendia ser geométrico, mas resultava aborrecido. Não ajudou o facto de o “gig” ter sido demasiado longo. Os segundos (Stephen Shiell e Hannah White conduziram antes uma oficina sobre o conceito de “deep listening”) propuseram-se desenvolver um ritual de escuta com voz, percussão e gravações de campo, acabando pela mera sugestão desse formato.
Cumprido o 10º aniversário do MIA, a associação conduzida por Paulo Chagas e Fernando Simões iniciará em breve a preparação dos 10 anos que estão por vir. Antes disso, porém, estão a cumprir uma das instruções da composição “para improvisadores” de Nuno Rebelo a que fizemos alusão no início deste texto: «Após a performance os músicos podem ir beber um copo e conversar acerca dos melhores e dos piores momentos que ocorreram…»