Luís Lopes / Fred Lonberg-Holm / Ingebrigt Haker Flaten / Gabriel Ferrandini
Estratégia de evitamento
Num permanente jogo de aproximações e distanciamentos do rock, dois dos mais importantes músicos da cena nacional da improvisação e duas luminárias dos circuitos internacionais foram à SMUP levantar algumas questões de fundo. A jazz.pt ouviu-os e ficou a pensar…
Nos instantes anteriores à hora marcada para o concerto a que dedicamos estas linhas era muito evidente, pela quantidade de pessoas que no passado dia 20 de Junho se concentravam no bar e pelo facto de algumas delas serem músicos e profissionais de várias outras artes, que na SMUP se ia viver mais um momento de excepção, a juntar a outros que naquele espaço da Parede ocorreram. Não era para menos: dois “habitués” da casa, o guitarrista Luís Lopes e o baterista Gabriel Ferrandini, iam tocar com duas luminárias do jazz criativo e da música improvisada dos circuitos internacionais…
O violoncelista, Fred Lonberg-Holm, é um dos expoentes da chamada “cena de Chicago”, enquanto mentor de formações como o Valentine Trio e a Lightbox Orchestra, membro de vários grupos de Ken Vandermark e ocasional parceiro de músicos como Joe McPhee, Anthony Coleman e Mats Gustafsson, para além das suas associações a bandas de rock como God is My Co-Pilot, The Flying Luttenbachers e Wilco. O baixista, Ingebrigt Haker Flaten, foi um dos fundadores dos entretanto extintos The Thing, lidera o grupo de metal-hip hop-jazz The Young Mothers, integra os Atomic e colabora com figuras como Rob Mazurek, Paul Lovens e Mette Rasmussen. A ligação de ambos a Portugal vem de muito atrás, e se Lonberg-Holm acabou por fixar residência em Lisboa, Flaten visita frequentemente o nosso país, seja com os seus próprios projectos ou para encontros como este: o quarteto tocou no dia seguinte no Barreiro (uma iniciativa da Out-ra na Biblioteca Municipal) e teve antes uma primeira data em Coimbra (na República dos Inkas, em “gig” inserido no festival Sons da Cidade) numa variante do alinhamento que contou com Helena Espvall no violoncelo.
O envolvimento de Lopes, conhecido pelo modo como lida com “feedbacks” e distorções guitarrísticas, o facto de Flaten surgir no contexto com uma guitarra baixo e não com o seu mais habitual contrabaixo e a circunstância de Lonberg-Holm ter diante de si uma pedaleira de efeitos fazia suspeitar que haveria uma explícita ligação idiomática das improvisações com o rock. Assim não aconteceu. Ainda que decorrendo num plano em que o factor eléctrico da música que se tocou foi explorado até ao limite, os participantes não quiseram dar corpo aos motivos identitários do género. Não se ouviram “riffs” e em nenhuma ocasião a bateria de Ferrandini sugeriu um “beat” ou sequer uma métrica definida.
Podem os músicos não ter determinado previamente que estes seriam os termos (não sabemos), mas esteve em jogo uma permanente estratégia de “evitamento” que se manteve arriscadamente na linha de separação: reconhecíamos os esboços de uma conotação rock nos exactos instantes em que esta era impedida. Ou seja, havia como que uma “composição” delineada por princípios de proximidade e alheamento, regulada por desenvolvimentos de carácter textural e abstracto que eram, com toda a evidência, destilados das típicas sonoridades do rock. Podemos até dizer que os dois portugueses, o norte-americano e o norueguês procuraram levantar questões quanto à natureza da livre-improvisação como música “não-idiomática”, problematizando de forma muito particular o conceito-base de que esta prática artística está para além dos idiomas. E muito particular porque o evitamento do rock em processo outra coisa não fez do que realçar a fantasmizada presença desse mesmo rock. Quanto mais negado este era, mais se fazia sentir.
E porque assim foi, não só tudo isto resultou num grande prazer para os ouvidos como se fez pedagogia e musicologia. Pena é que não haja o hábito de concertos assim serem seguidos por uma conversa com o público. Muito haveria a discutir…