Lantana, 12 de Julho de 2019

Lantana

Sonho acordado

texto Rui Eduardo Paes fotografia Cláudio Rêgo

O sexteto feminino que anda nas bocas dos apreciadores portugueses das músicas criativas foi à Parede mostrar os motivos que dele fazem uma das boas surpresas de 2019. A música pendular que tocou envolveu os presentes no ritual e embalou-os num sonho acordado. A jazz.pt conta como foi…

Uma das maiores surpresas do ano em curso no que às músicas criativas portuguesas diz respeito tem sido este grupo que escolheu como nome, Lantana, as flores infestantes do campo que nenhum herbicida consegue controlar. E não somente (mas também) porque é exclusivamente formado por mulheres – surgiu com um projecto musical muito próprio e que o diferencia dos demais no domínio da improvisação. Logo à nascença, teve a vantagem de uma projecção extra que o levou a outros públicos: a cantautora Lula Pena escolheu-o para a acompanhar na residência artística que está a realizar na ZDB, em Lisboa, e nos concertos que vão dando conta dos resultados aí obtidos.

Sem o enquadramento da canção, do modo como originalmente foi pensado, o sexteto formado por Anna Piosik, Maria Radich, Maria do Mar, Joana Guerra, Helena Espvall e Carla Santana rumou até à Parede no passado dia 5 de Julho, para uma apresentação na SMUP. Mais uma vez, viveu-se nesse espaço a expectativa de que se ia assistir a um momento especial, e assim aconteceu.

A música de Lantana confirmou então o seu carácter hipnótico, mas de uma forma que nunca coincidiu com as práticas musicais de “evasão”, sejam as que escolhem motivos rítmicos em repetição ou elipse para iludir o tempo ou discorrem em fluxos de “stream of consciousness” aparentados com o psicadelismo da década de 1960. O movimento que ia conduzindo a performance era pendular, quase lembrando uma peça do início do percurso de Steve Reich, “Pendulum Music”.

Digo “quase” porque a exuberância tímbrica de Lantana pouco tem que ver com o ascetismo desse tema do compositor minimalista norte-americano: umas vezes o vai-e-vem do que ouvíamos mais se assemelhava aos avanços e recuos de um baloiço, numa bizarra alusão à vivência infantil, enquanto noutras ocasiões ficávamos ensimesmados com a insistência brutal das ondas do mar invadindo e logo fugindo da areia da praia. Pelo meio surgiam conotações bem mais subtis, como se leves brisas agitassem o capim e as copas das árvores.

Não foi sempre assim: aqui ou ali a música entrava em remoinho, espiralando-se. Deixava de ter uma condição horizontal para se verticalizar: levantava-se, mas sugerindo que tal ocorria por acidente, por falha mecânica das forças da natureza e das leis da física. Nesses instantes, tudo se alterava, o plano tonal clássico até aí explorado dando lugar a atonalismos e ruído. Desfeitos esses novelos que pareciam surgir ao acaso, a mesma cadência reemergia, andando para a frente e para trás nos seus impulsos estruturantes, embalando os ouvintes e criando nestes uma percepção onírica, de sonho acordado.

Tudo funcionava por camadas, juntando num igual propósito umas quantas contradições de género e estilo. A electrónica de Carla Santana fornecia o chão e os envolvimentos, muito ao jeito da electroacústica experimental. A voz de Maria Radich era onomatopaica e conversacional, com ligações directas à poesia fonética pós-Dada. O violino de Maria do Mar e os violoncelos de Joana Guerra e Helena Espvall davam ao conjunto as ilações camerísticas que estão no eixo da linguagem de Lantana. O trompete de Anna Piosik sobrevoava sobre tudo isto, ou cortava a massa das construções operadas, com uma discursividade mais obviamente jazzística. O incrível é que a combinação fazia sentido.

Se não havia respirações ou brancas de silêncio (quando algum dos instrumentos se retirava havia sempre outro que lhe ocupava o lugar), de modo a não quebrar com o encantamento, as dinâmicas eram profusas e disparavam em todas as direcções, com pormenores e grandes gestos a soltarem-se simultaneamente no ar. Nada do que estava a acontecer se relacionava com as coordenadas do minimalismo, que era o que se podia prever.

Quando se esperavam as estratégias do já mencionado Steve Reich era a não-linearidade de Morton Feldman que se proporcionava. O muito pequeno e o muito presente coexistiam sem mútua neutralização de efeitos, sem que nada desaparecesse do espectro auditivo e sem que alguma preponderância perdesse força. Estávamos mergulhados na teia dos sons, nenhum esforço de escuta nos sendo exigido no geral inebriamento em que nos encontrávamos. De alguma maneira, não éramos os agentes passivos daquele ritual, participávamos nele. Quando tudo terminou foram necessários alguns segundos para acordarmos e aplaudirmos, com aquele aplauso a parecer que nos era também dirigido. Gilles Deleuze dizia que a música nada comunica, mas o certo é que ali, durante uma hora, estivemos em comunhão comunicante.

Fixem este nome: Lantana. Vamos ouvir falar dele muitas vezes…

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