Jazz im Goethe-Garten
Um JiG-Gante em andamento
A comemoração dos 15 anos do festival promovido pelo Goethe Institut em Lisboa fez-se na primeira metade de Julho com música europeia de elevada qualidade. O arranque fez-se com os portugueses Cat in a Bag e o fecho com os alemães Philm, dois dos pontos altos da edição.
Com a fiabilidade de um motor alemão, ei-lo que voltou ao Goethe Institut entre os dias 3 e 12 de Julho. O nome esclarece: JiG-G – Jazz im Goethe-Garten, uma mistura explosiva de jazz, ambiente de jardim e Goethe (a língua e a cultura alemãs dominam o acontecimento). Há ainda cerveja, pretzel, salsichas e salada de batata barbaramente deliciosas. A ideia começou há 15 anos e é hoje um festival europeu, com seis concertos em duas semanas apresentados por grupos de várias nacionalidades: o Goethe teve a inteligência e o espírito – tão pouco nosso – de congregar esforços. A Alemanha é o centro aglomerador (não é uma ironia) e as embaixadas austríaca, espanhola, italiana e suíça apoiaram a vinda dos seus músicos para duas semanas muito especiais em Lisboa. Quem gosta de jazz e ainda não experimentou o ambiente do Goethe Institut tem de colocar o programa já na agenda do próximo ano.
Rui Neves, o programador, tem aqui a possibilidade de convidar músicos menos populares, mas não menos interessantes. Grupos emergentes, de um jazz desafiante, novo e com pica, que não preenchem o anfiteatro ao ar livre da Fundação Gulbenkian (é ele também o director artístico do Jazz em Agosto), mas enchem à pinha o “garten” do Goethe. São mais de 300 bilhetes que entram pelos jardins, o limite máximo deste espaço privilegiado no centro de Lisboa.
Cat in a Bag
O festival deste ano começou português com um nome inglês: os Cat in a Bag são um projecto que surge dos Slow is Possible. Tocam os “Slow” Bruno Figueira, João Clemente e Duarte Fonseca com o “Cat” João Lucas. A ideia deste “spin-off” parece ser a de ter uma banda mais pequena e leve, com muito mais espaço para a improvisação. Os Cat estão constantemente à procura de canções, mas sem qualquer acordo prévio. São um exemplo da construção de ideias em cima de ideias, prática colaborativa essa que é rara no mundo real, onde as pessoas querem muito fazer vingar as suas noções pessoais, mas tão comum no jazz.
Música improvisada, mas sempre atenta às estruturas que vão surgindo, e estas surgem. Linhas melódicas soul, swing, rock, noise, tudo entra neste saco de gatos. O grupo vai ouvindo e aceitando todas estas formas, trata-as e testa-as contra os seus processos. Por vezes em consenso, outras em dissenso. Boa música, com o quarteto sempre muito ligado dentro da música, a seguir as deixas uns dos outros. Um bom arranque do tal motor germânico. (G.F.)
Dave Gisler Trio
Para o segundo dia de concertos do JiGG ficou agendado um grupo oriundo da Suíça, o Dave Gisler Trio. O guitarrista, compositor e improvisador que o lidera é membro dos Weird Beard, banda que tocou na edição de 2017, e trazia na bagagem o disco “Rabbits on the Run”, editado pela Intakt em 2018. Nesse disco, a guitarra contou com o apoio de Raffaele Bossard (contrabaixo) e Lionel Friedli (bateria) e foram estes os músicos que se apresentaram ao vivo em Lisboa. A actuação arrancou de forma turbulenta, a guitarra tocada com arco e o contrabaixo e a bateria em convulsão. O trio abrandou depois o ritmo, fixando-se num “groove”, com a guitarra na frente. Depois saiu de cena, evoluindo-se para um duo de contrabaixo e bateria, com o primeiro em destaque. Quando a guitarra regressou, foi numa toada quase baladeira, açucarada, com o trio a revelar um entendimento perfeito.
O grupo trabalha a partir de composições base, com muito espaço pelo meio para a improvisação. O segundo tema arrancou com uma linha bem definida que a guitarra foi explorando. O que se seguiu começou com um solo de contrabaixo e continuou com uma guitarra atmosférica e uma bateria subtil, ancorados numa melodia de carácter melancólico. A quarta peça disparou uma voz pré-gravada, com os instrumentos a responderem com agressividade, como se se tratasse de uma discussão, até ficarem sozinhos e dialogando entre si. O fecho fez-se com a guitarra a anunciar o eixo melódico e os instrumentos rítmicos a estabelecerem uma marcação. O “groove” cresceu até atingir as proporções de uma intensidade rock. O grupo teve a oportunidade de mostrar toda a sua amplitude cromática, balançando entre o caos e a harmonia, sempre num precioso equilíbrio. (N.C.)
Synesthetic 4
Ao terceiro dia vieram os Synesthetic 4, directos da da Áustria e com vontade de invadir. O guitarrista já tinha estado no JiG-G há 12 anos e o baterista há dois. São 15 anos de existência e a história faz-se sentir também assim. O programa informava que a música do quarteto (baixo, bateria, guitarra e clarinete / voz) integrava o hip-hop. Sinceramente não ouvimos este último género musical, mesmo atendendo a que o hip-hop austríaco pode ser muito diferente e ter vontade de invadir a Polónia. Mudanças de ritmo permanentes marcavam a estrutura da música, que mais parecia um sismógrafo japonês. As frases da guitarra e do clarinete eram ossudas, como se tivessem sido escritas por uma matemática bela.
Mais do que hip-hop, ouvia-se o rock progressivo dos Gentle Giant, em versão revista e actualizada. O clarinetista cantava umas frases num patuá abstracto, para depois regressar à guitarra e a um uníssimo timbricamente bonito que evocava o som de um bailarico bávaro em “speed”. Jazz barroco, cheio de elementos decorativos e frases complicadas. Um concerto seco, com as emoções contidas, demasiado escrito e tocado com um rigor de neurocirurgião. (G.F.)
Ghost Trio
O JiG-G toca sempre entre quarta e sexta – por isso, cumprida a primeira dose, pausou até dia 10, quarta-feira, para regressar em língua italiana que, como todos sabemos, é a mais bela de ouvir do mundo. O jazz italiano tem uma grande tradição, mas tem ficado fechado na bota, com poucas excepções mais conhecidas. A paredense Clean Feed iniciou recentemente um processo de revelação internacional dos músicos transalpinos e percebemos, sem surpresa, que onde estão aqueles dois ou três estão muitos outros extraordinários. Por isso a expectativa estava em alta para o Ghost Trio: Silvia Bolognesi no contrabaixo, Marco Colonna nos sopros e Ivano Nardi na bateria.
Foi um concerto excelente com três músicos de enorme qualidade, com destaque inevitável para a Silvia e para o Marco. Este foi capaz de criar enormes melodias que tinham sempre um sentido incompleto, nunca se resolvendo. Impressionante a capacidade de criar canções bonitas que não têm princípio nem meio nem fim. O jogo entre o contrabaixo e os clarinetes foi o segundo elemento de encanto. A música parecia ensaiadíssima ao pormenor, de tal modo eram coerentes as ideias e o desafio de respostas entre ambos. Nunca ouvimos uma ideia vulgar, uma melodia sensaborona ou um acompanhamento estúpido. Tudo da mais alta qualidade italiana. Silvia tem um grande som de contrabaixo e uma técnica superior. Andámos frequentemente próximo dos blues, numa interpretação europeia e operática (ora imaginem lá a geringonça). Ivano tocou bem e acompanhou sempre com bom gosto, mas sem se notabilizar. Grande concerto. (G.F.)
Albert Cirera / João Lencastre
O projecto luso-catalão Cirera & Lencastre apresentou-se ao vivo no dia 11, a tarde mais quente de todo o festival, com o termómetro a bater nos 33 graus às sete da tarde. Esta proposta junta o baterista luso João Lencastre com o saxofonista Albert Cirera, catalão que viveu em Lisboa e estabeleceu laços fortes com a comunidade jazzística. Lencastre publicou este ano o disco “Parallel Realities” (FMR Records), liderando um grupo com Rodrigo Pinheiro (piano), Pedro Branco (guitarra eléctrica), João Hasselberg (contrabaixo) e…. Albert Cirera. Contudo, este trabalho em duo não é uma versão “redux” desse disco. A dupla apresentou aqui um universo particular. No jardim do Goethe, Lencastre começou por explorar a electrónica e criar um padrão ambiental de fundo, que ficou em “loop” como uma malha estática sobre a qual entraram a bateria e o saxofone tenor.
Ao segundo tema a dupla manteve a estratégia, arrancando com a electrónica, mas desta vez Lencastre desenvolveu uma batida dançável, sobre a qual o saxofone começou por dançar e depois foi acrescentando energia e argumentos. Entre explorações mais atmosféricas, tons jazzísticos e ferocidade improvisacional, a dupla desenvolveu uma música que sempre conseguiu surpreender. A electrónica acrescentou novas cores ao ascetismo da combinação sopro / percussão, com os saxofones (tenor e soprano) de Cirera umas vezes a integrarem motivos jazzísticos e outras soando rugosos e experimentais. Em qualquer desses mundos o músico esteve confortável. Quem ouvisse esta música sem ver quem a tocava poderia pensar que não se tratava de um duo, tal era a criativa multiplicidade de camadas. (N.C.)
Philip Gropper’s Philm
Na conclusão do festival, e tal como é hábito, chegou a proposta musical oriunda da Alemanha: o projecto Philm, do saxofonista e compositor alemão Philipp Gropper. O quarteto já carrega alguma história: nasceu no ano de 2012 e acaba de editar o seu quinto disco, “Consequences” (WhyPlayJazz, 2019). O contrabaixista é um músico já conhecido dos portugueses, o alemão Robert Landfermann – integra o Lisbon-Berlin Trio do guitarrista Luís Lopes. O grupo completa-se com o austríaco Elias Stemeseder (piano e sintetizador) e o alemão Oliver Steidle (bateria). Gropper começou por anunciar que iam tocar os temas e improvisar na passagem entre uns e outros. A formação cumpriu e fez assim uma viagem fluida, ancorada na escrita, mas com espaços abertos que foi preenchendo de forma criativa. A partir de uma matriz jazz, desenvolveu uma comunicação sólida e sempre segura.
Com uma qualidade individual homogénea, é de realçar a excelente dinâmica de grupo. O grupo ligou os temas e tocou-os em sequência, sem pausas e quase sempre com a energia no vermelho, com pontuais momentos de acalmia. O público ficou convencido e exigiu um “encore”, tornando o concerto num dos pontos mais altos da edição deste ano. Depois, houve festa com banda-sonora providenciada por DJ Johnny, não faltando ainda o bolo para celebrar os 15 anos do festival. Pela consistência e a qualidade geral do trabalho de Rui Neves e Julia Klein, a celebração foi inteiramente merecida. (N.C.)