C. “Zíngaro” / J.B. Parrinha / N. Rebelo / U. Mitzlaff + The Attic
Da subversão
O último concerto de 2019 e o primeiro deste ano na SMUP mostraram-nos como a inclusão de um elemento subversivo num grupo pode funcionar excelentemente ou ser um perigoso risco. Saibam como Nuno Rebelo e Onno Govaert nos deram uma lição nesta passagem de ano…
Foram o último concerto de 2019 e o primeiro deste ano na SMUP (Parede). O primeiro apresentou, a 27 de Dezembro, uma formação inédita, com o acrescento de Nuno Rebelo ao trio, esse sim já estabelecido, de Carlos “Zíngaro”, José Bruno Parrinha e Ulrich Mitzlaff (foto acima). O outro, The Attic, revisitou a 8 de Janeiro o espaço em que foi gravado o primeiro disco do projecto, ainda com Marco Franco no lugar que agora é ocupado por Onno Govaert ao lado de Rodrigo Amado e Gonçalo Almeida. De comum, as duas sessões tinham, a priori, o facto de reunirem alguns dos nomes mais firmados da cena da música improvisada e do jazz criativo nacionais. Algo acabou, no entanto, por estabelecer uma coincidência adicional, ainda que por motivos diferentes: o facto de, em ambos os casos, um dos músicos ter funcionado como elemento subversivo das dinâmicas colectivas, num grupo com resultados altamente surpreendentes e no outro colocando tudo em risco.
Os músicos em causa foram Nuno Rebelo, o guitarrista convidado de “Zíngaro”, Parrinha e Mitzlaff para a ocasião, e Onno Govaert, o baterista que Amado e Almeida juntaram a si para tornar ainda mais imprevisível o pós-free jazz de The Attic. A forma como o núcleo instrumental do concerto de final do ano passado funciona enquadra-se (e fá-lo brilhantemente, note-se) nos parâmetros daquilo que, por falta de melhor descrição, vai sendo referido como “música de câmara improvisada”. Nesse aspecto, não havia que esperar grandes surpresas, a não ser, talvez, o que resultaria da circunstância de Parrinha se apresentar com um saxofone alto para além do seu habitual (juntamente com a versão soprano) clarinete baixo. Só que o acrescento de Rebelo não era inocente – naquele contexto, percebeu-se bem que o objectivo era ter nele um elemento disruptor, uma carta fora do baralho.
Com a guitarra (semi-acústica, ao contrário do que lhe é habitual) deitada no colo e atacada com objectos vários ou tocada convencionalmente, Nuno Rebelo tudo fez para deturpar o factor camerístico da música que íamos ouvindo, ampliando-lhe o campo de referências por meio da introdução das suas próprias, as que lhe vêm do rock e da pop. Com as deixas de Rebelo foi-se construindo a quatro uma teia de despropósitos que, por mais estranho que parecesse, faziam sempre sentido, ocorrendo nos momentos certos e com os argumentos mais apropriados para cada sequência. Depressa o público que enchia o sótão da SMUP entendeu que estava a assistir a algo de especial.
Foi igualmente um sótão lotado que uns dias depois recebeu The Attic, na primeira data de uma digressão que a banda faria em Portugal. Pois foi o clássico primeiro concerto de uma “tour”, com os músicos em alta de energia. Rodrigo Amado e Gonçalo Almeida procuraram contrariar essa excitação, entrando por situações mais reflexivas e calmas, mas Onno Govaert levou demasiado a peito o seu papel de agitador e obrigou-os repetidamente a aumentar o lume das prestações. Às tantas, Govaert entrou por um histrionismo, um descontrolo até, nos seus desempenhos, que dificilmente ouvíamos o saxofonista e o contrabaixista. O que fez com a bateria chegou a ser assombroso de tão bom, fosse tecnicamente como no que de intrigante e inesperado atirava para as tramas, e isso sempre ao seu jeito rude e esquemático, mas teve alguma falta de noção quanto a volumes, medidas, escuta e interacção com os seus parceiros.
Tivemos, assim, nesta passagem de ano dois óptimos exemplos de como as contribuições manipulativas de um “joker” podem ser a mais-valia de um concerto magistral ou o calcanhar-de-aquiles de outro que, não fora isso, poderia ter sido igualmente incrível.